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domingo, 28 de abril de 2019

INSTITUTO ZOOTÉCNICO, NOSSA PRIMEIRA FACULDADE

Em agosto de 1892, o governo de Minas Gerais aprovou na Câmara Legislativa uma ampla proposta de reforma no sistema público de ensino no estado. Nos debates desse projeto, o deputado uberabense Alexandre Barbosa e dois colegas incluíram no texto da “Lei nº 41” a sugestão de abertura de duas escolas de ensino superior no estado: um Instituto Zootécnico em Uberaba e um Instituto de Agronomia na cidade de Leopoldina.

A montagem de uma escola que formasse técnicos especialistas em atividades pastoris era um antigo anseio da população do Triângulo Mineiro, num momento em que as atividades agrícolas e a criação de gado zebu ganhava espaço. A criação desse instituto que, pela legislação da época, seria equivalente a um curso superior recebeu amplo apoio na imprensa local. Em 1892, o jornal Correio Católico explicava: “O Instituto Zootécnico viria a ser um abundante foco de luz que regenerará a industria pastoril nesta região. Nesse Instituto serão criados animais de raça, que irão melhorar a criação já existente: aí se estudarão as enfermidades do gado, o meio de curá-las. Aí se aplicarão os processos necessários para a utilização mais econômica e rendosa dos produtos da industria pastoril”.

Aprovada a Lei, era preciso que a cidade arranjasse um local para montar a escola. Decidiu-se que o Instituto Zootécnico seria montado na antiga Chácara Boa Vista, situada a pouco menos de três quilômetros do centro da cidade, próximo de onde o Córrego das Lages desagua no Rio Uberaba. Essa propriedade havia pertencido ao sargento mor (mais tarde promovido a major) Antônio Estáquio, o fundador de Uberaba, que lá morou antes de transferir-se para uma outra casa na atual praça Rui Barbosa. Tinha uma área com cerca de 100 alqueires onde, décadas mais tarde, funcionaram a Fazenda Modelo e a Epamig.

A fazenda foi desapropriada e o governo estadual indicou e contratou os professores – alguns dos quais trazidos do exterior. Um antigo casarão colonial que servia de sede (não se sabe se era a casa original do major Eustáquio) foi reformado para receber salas de aula e laboratórios. A direção ficou inicialmente a cargo do engenheiro agrônomo Ricardo Ernesto Ferreira de Carvalho, mais tarde sucedido pelo professor alemão Frederico Maurício Draenert, que fora trazido da Bahia para lecionar no Instituto.

No dia 5 de agosto de 1895, o Instituto abriu as portas para uma turma de 21 alunos. Uberaba, uma cidade que não tinha nem 10 mil habitantes na área urbana, estava orgulhosa de ter sua primeira faculdade. Por meio de provas escritas, foi feita a seleção dos candidatos às poucas vagas, entre jovens com mais de 15 anos que apresentassem “certidão de aprovação em português, francês, história e geografia geral e do Brasil, matemática elementar e noções de cosmografia”, conforme previam as regras do seu regulamento interno. O curso era ministrado em período integral: os alunos entravam às 9:00, tinham aulas teóricas de manhã e aulas práticas no turno da tarde até por volta das 16:00.

A escola era relativamente longe do centro, o que obrigava alunos e professores a longas caminhadas diárias – já que não havia muitas opções de transporte. Mas, pelo que se lê dos relatos da época, essa foi a menor das dificuldades enfrentada. Desde o início, o funcionamento da nova escola enfrentou percalços e dificuldades financeiras. Havia poucos animais disponíveis para os estudos e o governo atrasava frequentemente o pagamento dos fornecedores. Também aconteceram alguns problemas administrativos e divergências sérias entre alunos e professores.

Aos trancos e barrancos, três anos depois, o Instituto formou sua primeira – e única – turma de engenheiros agrônomos. Oito alunos concluíram o curso: os irmãos José Maria e Fidélis Gonçalves dos Reis, Militino Pinto de Carvalho, Hildebrando de Araújo Pontes, Delcides de Carvalho, Otávio Teixeira de Paiva, Luiz Ignácio de Sousa Lima e Gabriel Laurindo de Paiva. Segundo o jornal Gazeta de Uberaba, tratava-se de “uma plêiade de moços estudiosos, auxiliados por mestres dedicados da ciência agrícola”. Boa parte deles deixou seu nome imortalizado na história de Uberaba.

As dificuldades financeiras do Instituto decorriam de uma grave crise fiscal por que passava Minas Gerais. Em outubro de 1898, antes que houvesse uma segunda turma, o novo presidente do estado, Silviano Brandão, suspendeu por tempo indeterminado as atividades da escola. Que nunca mais reabriu, para o desalento dos habitantes de Uberaba.


(André Borges Lopes)


Cidade de Uberaba

O RUMOROSO CASO DE UM MÉDICO


Há quase um século, no dia 6 de junho de 1919, a cidade de Uberaba aparecia em alguns jornais do Rio de Janeiro – entre eles o prestigioso diário “A Noite” – trazendo uma notícia escabrosa: “Um médico conhecido maltrata horrivelmente uma mulher”. Segundo as publicações, um respeitado médico da cidade mineira havia cometido barbaridades contra uma mulher, com a qual teria uma relação não oficial: uma “amásia” no jargão da época. Dizia o texto que o médico “levou a amásia para o campo onde, depois de mandar espancá-la pelo seu camarada, lhe cortou os cabelos jogando-lhe piche sobre a cabeça. Abandonou-a em seguida. A vítima arrastou-se desse lugar ermo até a cidade, em mísero estado, apresentando-se às autoridades policiais, que lavraram auto de corpo de delito”.

A terrível acusação recaia sobre um cidadão respeitável e famoso: Dr. João Teixeira Álvares, natural de Goiás, formado em medicina no Rio de Janeiro em 1885 e, na época do escândalo, já por volta dos seus 60 anos de idade. Dr. João Teixeira tinha um histórico de trabalho em pediatria e puericultura na capital federal, e clinicava em Uberaba desde o final do século XIX. Em 1905, aproveitando-se da inauguração da luz elétrica na cidade, havia aberto uma avançada clínica de “Hidroterapia, Eletricidade e Massagem”. Um depoimento seu era usado para ilustrar em jornais do país anúncios publicitários do remédio “Fluxosedatina”, produzido por uma farmácia carioca, empregado no tratamento de problemas menstruais. Segundo o Almanack Laemert, residia em um palacete na rua Artur Machado nº 47 e possuía a Casa de Saúde Nossa Senhora de Lourdes, na rua João Pinheiro.

Mas o Dr. Teixeira não era apenas médico, também era escritor e jornalista. Editava, desde o início da década de 1910, a revista católica “Jesus Cristo”. Por volta de 1911, montara um jornal de nome “Aiglon” junto com Antônio Batalha. Dois anos depois, lançou uma revista semanal em grande formato – a “Brasil Central” – feita em parceria com o jornalista Moyses Santana e o monsenhor Inácio Xavier da Silva. Também escrevera livros: a tragédia “Eleusa” e o romance histórico “Montezuma”, além de dramas bíblicos e trabalhos científicos na área de medicina. Ostentando esses predicados, em janeiro de 1914, Dr. João Teixeira arriscou sem sucesso uma candidatura à Academia Brasileira de Letras – escrevendo pessoalmente uma carta aos demais imortais, onde sugeria seu próprio nome para uma vaga recém aberta.

Outra área onde o médico se destacava era a religião. Católico fervoroso e admirador de Nossa Senhora de Lourdes, tinha em seu palacete uberabense uma capela dedicada à sua santa de devoção. Proferia também palestras sobre os milagrosos poderes curativos das águas de Lourdes e era figura conhecida nos congressos eucarísticos. Em 1915, foi fundador e passou a presidir o Círculo Católico Uberabense. Montou em seu casarão um cinema particular, no qual exibia para os jovens películas sacras, como forma de livrá-los do vício e das influências perniciosas do cinema comercial.

No terreno da religião, comprou brigas com os kardecistas, acusando os médiuns de serem portadores de severos transtornos mentais, postulação que contava com o apoio do famoso psiquiatra paulista Dr. Franco da Rocha. Investiu também contra os protestantes e não poupou sequer os irmãos dominicanos franceses de Uberaba, a quem acusava de indisciplina e de ter uma influência perniciosa nos destinos da cidade. Nessa briga, teve ao seu lado o primeiro bispo uberabense, Dom Eduardo Duarte e Silva.

Não era o a primeira polêmica envolvendo o médico mas, com tanto renome, títulos, amigos influentes e aliados poderosos, não surpreende que a acusação da amásia agredida – de quem não sabemos sequer o nome – tenha sumido sem maiores repercussões ou consequências legais, além do escândalo momentâneo. Não encontramos uma única notícia de decorrências do fato na imprensa local ou em jornais de fora. Não há sinal de que o rumoroso caso tenha gerado um processo ou ido a julgamento. Dr. João Teixeira seguiu inabalável em sua carreira de sucesso e manteve-se na presidência do Círculo Católico de Uberaba. Na década de 1930, foi fundador e e presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Uberaba. 

A “amásia agredida” e suas terríveis acusações – verdadeiras ou falsas – sumiu na poeira do tempo, como era usual ocorrer naqueles tempos com mulheres que ousavam afrontar homens poderosos acima de qualquer suspeita.


(André Borges Lopes)


Cidade de Uberaba

ZEBUS NO QUINTAL DO BISPO

Dentro de um mês, Uberaba estará novamente às voltas com o seu grande evento anual. No dia 27 de abril será aberta a 85ª ExpoZebu que, este ano, tem uma atração extra: os criadores de gado indiano comemoram o centenário da fundação da “Herd Book Zebu”, a primeira associação fundada no País para apoiar o trabalho de seleção genética dos bovinos que foram buscados no outro lado do mundo para revolucionar a pecuária brasileira.

Funcionando desde 1941 no Parque Fernando Costa, pouca gente têm conhecimento de que a que os primeiras feiras de gado realizadas em Uberaba nem de longe dispunham de instalações adequadas. Em 1911, a exposição pioneira foi montada em pavilhões temporários, construídos pelo engenheiro Francisco Palmério (pai do escritor Mário Palmério) no antigo “Prado de São Benedito”, uma pista de corridas de cavalos que existiu até a década de 1950 num terreno entre a atual Estação Rodoviária e a avenida Fernando Costa.

Nas décadas seguintes, aconteceram exposições esporádicas, sem local fixo. Algumas foram feitas no Prado, outras no antigo “Largo da Misericórdia: um descampado que havia entre o Colégio N. Senhora das Dores e o antigo prédio do hospital Santa Casa de Misericórdia – onde mais tarde foi feito o Uberaba Tênis Clube. Em 1934, a grande “Exposição-Feira Agro Pecuária do Triângulo Mineiro”, realizada com apoio da prefeitura, ocupou o novo prédio (ainda em obras) da Santa Casa e seu quintal, onde hoje existe o Hospital Escola da UFTM.

Primeira sede da Sociedade Rural de Uberaba do Triângulo Mineiro. Rua: São Sebastião,259 - Década:1930. Foto/Acervo: Museu do Zebu.
Foi durante a exposição de 1934 que os pecuaristas da região decidiram montar uma nova associação para substituir a Herd Book Zebu. Sob a liderança do agrônomo Fidélis Reis, foi fundada a Sociedade Rural do Triângulo Mineiro que, três décadas mais tarde, daria origem à ABCZ – Associação Brasileira de Criadores de Zebu. Conhecida pela população como “a Rural”, a SRTM assumiu o compromisso de realizar todos os anos uma exposição de gado na nossa cidade. Começou aí a tradição dos certames anuais, que logo se transformaram em um dos mais importantes eventos do sector agropecuário brasileiro.

Tendo que montar uma exposição por ano, a SRTM cuidou de arranjar um local apropriado, que acomodasse as feiras de modo permanente. Como a entidade não tinha sede própria, a diretoria conseguiu um terreno na Rua São Sebastião, a menos de dois quarteirões da catedral, onde ergueu provisoriamente um galpão com uma portaria em traços “art déco”, estilo em moda na época. Esse terreno (onde hoje está o edifício São Gerônimo) tinha uma vantagem: a parte traseira se comunicava com uma chácara, que se estendia por todo o terreno entre a rua Major Eustáquio e o córrego da Manteiga, sobre o qual surgiu mais tarde a Av. Santos Dumont. Uma inusitada área rural, a poucos metros da praça da Matriz, loteada a partir dos anos 1950 para dar origem às ruas Antônio Carlos e Getúlio Guaritá.

Nessa chácara, a SRTM mandou construir dez currais cobertos, que abrigavam os animais durante as exposições. Ficavam logo atrás do grande palacete que, poucos anos antes, havia sido comprado pela Cúria Metropolitana para servir de residência ao Bispo de Uberaba. Dai surgiu a expressão de que as exposições eram realizadas “no quintal do bispo”. Há uma foto, feita dos fundos da SRTM, onde se vê os currais quadrados – feitos de madeira, cobertos com telhas francesas – e, no alto do morro do outro lado do córrego da Manteiga, os antigos prédios do Colégio Diocesano.

O local acomodou seis exposições entre 1935 e 1940 era muito limitado para as pretensões de um evento, que crescia ano após ano. Ao final de cada dia, os animais precisavam ser retirados dos currais e levados para fazendas nas imediações da cidade, retornando na manhã seguinte. Pode-se imaginar o transtorno das boiadas cruzando a área central da cidade. Além do mais, faltava espaço para os estandes comerciais e de diversões, que haviam deixado boas lembranças nas exposições de 1911 e 1934. Por isso, todos se animaram quando o Fernando Costa – então ministro da Agricultura do governo Getúlio Vargas – sugeriu que fosse construído um novo parque de exposições em Uberaba, que acabou ganhando seu nome. Essa e outras curiosidades estarão no livro “ABCZ – 100 anos de história”, de autoria de Maria Antonieta Borges Lopes e Eliane Marquez de Rezende, que será lançado no dia 25 de abril, dentro das comemorações do centenário.


(André Borges Lopes) 

Cidade de Uberaba

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Zebus de Sombrero

Vem chegando a Exposição e, com ela, os visitantes do exterior. Dentro de alguns dias, os “gringos” já estarão pela nossa cidade. Nas últimas décadas, o gado Zebu de Uberaba tornou-se famoso por todo o mundo, seja pela qualidade da sua genética, seja pela excelência do controle sanitário. Se a gente pouco vê boiada embarcando em avião rumo ao estrangeiro, não é porque nosso Zebu não emigre. Mas porque novas tecnologias dispensam os animais do incômodo transporte: no lugar vão botijões de sêmen e embriões congelados, levando o DNA do zebu triangulino para povoar pastos de outras terras.

De início, as coisas não eram tão fáceis. Sempre que a situação econômica apertava no Brasil, os criadores de Zebu fino tentavam recorrer à exportação de touros e matrizes para não ficar no prejuízo. E um dos locais mais sonhados era o México. Em parte porque o país asteca tem uma grande tradição em pecuária e condições ambientais semelhantes às que há no Brasil. Em parte porque sua enorme fronteira com os Estados Unidos sempre serviu de passagem para gado contrabandeado ao país vizinho – driblando a rígida vigilância sanitária dos EUA.

A primeira vez que uberabenses tentaram vender gado na América do Norte as coisas não correram nada bem. Era o ano de 1922 e os pecuaristas brasileiros estavam desesperados pela crise dos negócios no País – fruto do final da 1ª Guerra na Europa e de uma epidemia de peste bovina que obrigou o governo a proibir o tráfego de gado. Dois grupos de zebuzeiros (um de Uberaba outro do Rio de Janeiro) colocaram centenas de cabeças de zebu em navios e foram tentar vendê-los no sul dos EUA, onde os criadores estavam começando a formar os rebanhos de zebus Brahman. Foram impedidos pelas autoridades de desembarcar em Saint Louis, no Missouri, e desviaram o rumo a Vera Cruz, no México. Tiveram o azar de chegar bem no meio de uma guerra civil entre o presidente Álvaro Obregon e o caudilho Adolfo de la Huerta. Boa parte das reses finas foi confiscada pelas tropas em conflito para servir de churrasco. Só algumas poucas, talvez 20 ou 30, conseguiram entrar nos EUA pela fronteira. Os prejuízos para os uberabenses foram monumentais.

Em 1945 houve uma nova crise da pecuária no Brasil e uma nova oportunidade de exportação. No México havia interessados em comprar gado indiano para melhoramento da pecuária, entre eles o poderoso ex-presidente Lázaro Cárdenas. Mas a Secretaria de Agricultura do México impunha feroz resistência a esse negócio, alegando o risco de que o gado trouxesse ao país o vírus da febre aftosa. Contava com apoio dos EUA – na época o maior comprador de gado mexicano e interessado em vender aos vizinhos seus reprodutores Brahman. 

Em Uberaba, alguns grandes criadores de Zebu montaram a “Sociedade Exportadora Brasil-América” para cuidar dessa transação. Por fim, com o apoio de Cárdenas, os uberabenses ganharam a queda-de-braço. Mas, para cumprir as exigências sanitárias, o rebanho foi levado para a Ilha do Sacrifício, no Caribe, onde ficou estabulado em longa quarentena, durante a qual foram submetidos a rigorosos testes por veterinários e zootecnistas. Finalmente, o rebanho – já todo vendido – foi considerado sadio e liberado para ir para as fazendas.

Poucas semanas depois explodiu a bomba: em abril de 1946, apareceram no México alguns casos isolados de aftosa, dando início a uma epidemia que se espalhou rapidamente. Imediatamente, os EUA suspenderam as importações de gado – jogando a pecuária mexicana em uma longa e profunda crise. Pesadas acusações foram lançadas sobre os zebus brasileiros e os defensores da importação, inclusive Cárdenas, politizando a discussão. 

Nunca chegou a ser comprovado que os zebus uberabenses tenham sido os responsáveis pela essa epidemia. Mas o estrago estava feito. O combate à febre aftosa no México levou quase uma década para ser concluído e causou prejuízos incalculáveis à economia do país. Houve até algumas dezenas de mortes de fiscais sanitários, camponeses e soldados em revoltas de pequenos criadores que não se conformavam com o abate obrigatório dos seus rebanhos sob suspeita. O trauma demorou a ser superado e, por 50 anos, nenhum zebu brasileiro pode entrar no México. Somente em 1997 um acordo sanitário reabriu as negociações.

Esse e muitos outros causos, estão no livro “ABCZ 100 anos: história e histórias”, que será lançado na próxima Expozebu.


(André Borges Lopes)


Cidade de Uberaba

sábado, 16 de março de 2019

UM JUIZ CRIVADO DE BALAS

Já passava das cinco horas, mas o sol ainda não havia nascido na manhã do dia 14 de junho de 1878. A pequena cidade de Uberaba despertou em sobressalto com o ruído de cinco tiros disparados em sequência. Vizinhos pularam da cama e, no quintal de uma casa próxima à igreja matriz, encontraram em agonia o bacharel Evaristo Rodrigues da Silva Carvalho. Três tiros disparados contra o peito e mais dois no ouvido direito não conseguiram tirar sua vida. Ao seu lado, o delegado de polícia encontrou um revolver vazio.

Episódios de violência não eram incomuns no sertão do Triângulo Mineiro do séc. XIX – e esse poderia ter sido mais um caso de vingança envolvendo jagunços e coronéis. Mas, aparentemente, Evaristo havia tentado o suicídio. Dias antes tivera a notícia de que sua nomeação como Juiz de Direito da comarca da Posse, na província de Goiás, havia sido tornada sem efeito. Mais que isso: outro juiz já havia assumido o posto. Desempregado, sem patrimônio e sem família rica, entregou-se ao ato de desespero. Agonizou por semanas em uma casa de saúde, vindo a falecer no dia 3 de julho.

Nos tempos de hoje – onde magistrados são cargos de carreira, concursados, com altos salários, estabilidade e direito a benefícios – pode parecer estranho um infortúnio como esse. Mas as coisas eram diferentes no reinado de Dom Pedro II. O governo era uma monarquia parlamentarista, mas cabia ao imperador nomear o presidente do Conselho de Ministros, que montava o gabinete e o submetia à aprovação dos deputados e senadores. Com eleições manipuladas pelas lideranças locais, o imperador não tinha dificuldades em manter o parlamento sob controle. Alternava o ministério entre os partidos Conservador (“saquaremas”) e Liberal (“luzias”). Na prática, mero rodízio, já que programas e ideias eram similares. De onde surgiu a frase do Visconde de Albuquerque: “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”.

Evaristo Carvalho era de origem relativamente humilde. Formara-se em direito e havia feito uma carreira de sucesso durante o longo mandato do conservador Antero Cícero de Assis, que ocupou a presidência da província de Goiás por sete anos (1871 a 1878). Dois anos antes de Antero chegar ao governo, Evaristo fora nomeado promotor público na comarca do Rio Paranaíba, mas desentendeu-se com aliados do então presidente da Província e foi afastado do cargo. Quando Antero assumiu, nomeou Evaristo como Juiz municipal em Rio Verde. Dois anos depois, assumiu o cargo de Juiz de Direito interino na comarca de Rio das Almas.

Os cargos de juiz eram de livre nomeação do Ministério da Justiça, usualmente negociados com as autoridades locais. Poucos eram os juízes efetivos, e muitos deles se afastavam das comarcas em intermináveis licenças remuneradas. O resultado era um festival de “juízes interinos” nomeados a título precário por indicação dos presidentes provinciais. Em 1876, Evaristo estava em licença para tratamento de saúde na cidade de Goiás (atual Goiás Velho) quando foi nomeado juiz interino da 1ª e 2ª Varas da Capital.

A oposição o acusava de ser um “pau mandado” de Antero Cícero, colocado no cargo para legitimar desmandos e arbitrariedades. Desfrutava da intimidade do presidente, que o tratava como “distinto amigo” em documentos oficiais. Prestigiado, era convocado como examinador de história e geografia nas bancas de seleção de professores para o magistério. No cargo de Juiz, decidia questões de herança e propriedade de escravos. Uma de suas sentenças, em outubro de 1876, ganhou notoriedade: a pedido da Curadoria, decidiu pela nulidade dos certificados de propriedade e libertou quatro escravos reivindicados por uma viúva. Sua decisão acabou reformada na segunda instância e, posteriormente, no STF. Mas a discussão ganhou as páginas da revista Gazeta Jurídica, do Rio de Janeiro.

Em janeiro de 1878, Dom Pedro girou a roleta do ministério e o poder voltou às mãos dos liberais. Um novo presidente – Luis Gonçalves Crespo – foi nomeado para Goiás, devendo assumir no meio do ano. Rei morto, rei posto: Antero Cícero perdeu o poder que tinha no Ministério da Justiça. Em 9 de março, ainda conseguiu nomear o amigo Evaristo, que estava afastado por problemas de saúde, para a comarca de Posse. Dois meses depois, o ato foi cancelado por seu sucessor – que indicou um aliado para o posto. Enfermo, isolado e sem perspectivas, Evaristo apertou o gatilho na fria madrugada uberabense.


(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

JOÃO VALENTÃO E SEUS ARAPONGAS

O general João Baptista Figueiredo, que governou o Brasil entre 1979 e 1985, foi o último e o mais casca-grossa dos presidentes da ditadura. Formado na arma da cavalaria, nem tinha assumido o posto quando, questionado sobre o que achava do “cheiro do povo” respondeu na lata: “prefiro cheiro de cavalo”. Recém empossado na Presidência, foi recebido em Florianópolis por um protesto de estudantes que distribuíam xingamentos. Foi contido pelos seguranças da comitiva quando tentou partir para cima de alguns dos jovens que estavam mais próximos, enquanto gritava que “minha mãe não está em pauta!”

Figueiredo foi encarregado de concluir a abertura democrática “lenta, gradual e segura” planejada pelo seu antecessor, Ernesto Geisel. Logo de cara, alertou: “quem for contra a abertura, eu prendo e arrebento” – promessa que não cumpriu quando alguns renitentes começaram a colocar bombas em bancas de jornal e festas de 1º de maio. Mas promulgou uma anistia política em 1979, assistiu a vitória das oposições nas eleições de 1982 e, por fim, entregou o cargo a um sucessor civil eleito pelo Congresso.

Hoje, há quem diga que o período autoritário da ditadura teria sido um enorme sucesso do ponto de vista econômico. Quem passou pelos anos Figueiredo, sabe que as coisas não foram bem assim. Seu governo foi marcado por grave crise econômica, onde altas taxas de juros internacionais acabaram o dinheiro barato do início dos anos 1970. O Brasil importava a maior parte do petróleo, e os preços dispararam em 1979. A dívida externa crescente rompeu a marca dos 100 bilhões de dólares, obrigando o governo a pedir ajuda ao FMI. Internamente, a inflação passou de 45% ao ano para infernais 230%, enquanto a economia patinava.

A coisa não estava nada boa no dia 7 de maio de 1981, quando João Figueiredo veio a Uberaba prestigiar a 47ª Exposição Nacional de Gado Zebu. Os criadores de gado de corte estavam particularmente irritados. O governo reduzira as linhas de crédito e aumentara os juros, enquanto o preço dos insumos subia acima da inflação – já em 120% ao ano. A queda do poder aquisitivo da população havia derrubado o preço da carne: o quilo do contra-filé era vendido a US$ 3,00 nos açougues brasileiros, contra US$ 8,00 na Argentina e US$ 9,00 na Austrália. Para piorar, o humor de Figueiredo estava péssimo: poucos dias antes uma bomba estourara no colo de um militar no shopping Riocentro, elevando a tensão política no País.

Na ocasião, a ABCZ era presidida por Manoel Carlos Barbosa, jovem pecuarista e empresário do florescente negócio da inseminação artificial. Natural de Ituverava-SP, havia se formado em Direito em Uberaba, tinha 32 anos de idade e pinta de garotão. Em seu discurso, Manoel resolveu tomar as dores da categoria que representava. Com o presidente a seu lado no palanque do Parque Fernando Costa, cobrou um compromisso feito dois anos antes de que, em seu governo, a agropecuária teria prioridade. De forma respeitosa, e sem culpar diretamente o presidente, denunciou dificuldades enfrentadas pelo setor e listou promessas não cumpridas. Alertou, ainda, para o fato de que muitos pecuaristas estavam desanimados e vendendo suas matrizes para o corte, colocando em risco o abastecimento futuro.

O general não escondeu a irritação com o fato de ser questionado em público por um moleque insolente. Fechou a cara e disse a Manoel: “você foi muito indelicado comigo, não quero conversar mais”. Emburrado e em silêncio, cumpriu as formalidades da visita, cancelou um encontro com produtores rurais e tomou o avião para o Rio de Janeiro. Atônitos, os uberabenses se dividiram entre os que apoiavam a atitude do presidente da ABCZ e os que consideraram o ato uma grosseria, temendo as consequências.

Como retaliação pública, Figueiredo deixou de vir às exposições nos dois anos seguintes. Mas hoje, graças à abertura dos arquivos secretos da ditadura, sabemos que a coisa não parou por aí. O governo ordenou que os arapongas do Serviço Nacional de Informações fizessem uma devassa nos negócios e na vida pessoal de Manoel Carlos. Um mês depois, baseando-se em meras suposições e ilações, um informe confidencial datado de 9 de junho de 1981 acusava o presidente da ABCZ de ser sonegador de impostos e de ter uma firma de atividades escusas que “estaria realizando contrabando de sêmen, o que lhe proporcionaria avantajadas recompensas financeiras”. Tudo sem provas e sem direito a defesa, como é de praxe nas ditaduras.



(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

TITO SCIHPA, GLÓRIA MÁXIMA DO CINE METRÓPOLE

Até a década de 1980, o Cine Metrópole foi a mais elegante e sofisticada casa de espetáculos de Uberaba. Inaugurado em 1941, funcionava anexo ao imponente Grande Hotel que, na época, detinha simultaneamente os títulos de maior edifício de concreto armado e de melhor hotel do Brasil Central. Ambos eram empreendimentos de Orlando Rodrigues da Cunha, sócio diretor da Empresa Cinematográfica São Luiz e também do hotel. Um espelho do progresso da “Princesinha do Sertão” em uma das épocas de ouro da pecuária do gado Zebu.

Durante décadas, o Metrópole foi palco de grandes eventos na cidade. Nos anos 1950, quando as faculdades uberabenses começaram a formar suas primeiras turmas de alunos, o grande auditório lotava, recebendo as famílias orgulhosas que vinham assistir às cerimônias de colação de grau de seus filhos. Muitas vezes, tendo celebridades nacionais, como Juscelino Kubitscheck e Carlos Lacerda, no papel de paraninfos. Mesmo em dias comuns, as sessões de cinema eram concorridas e as regras da casa exigiam que os frequentadores fossem devidamente trajados: aos homens, era obrigatório paletó e gravata.

A casa também recebia shows de música. Muitos que tiveram a chance de frequentar o cinema devem ter notado uma placa de bronze colocada no elegante hall de entrada com os dizeres: “TITO SCHIPA (glória máxima da Arte Lírica) cantou neste teatro – Grande Hotel – Uberaba, em XVII-VII-MCMXLI”. Dai surgiu uma lenda de que esse famoso tenor italiano teria cantado na inauguração da sala, o que não é verdade. Tanto o hotel como a sala de cinema foram abertos ao público no dia 8 de março de 1941, a apresentação de Schipa se deu dois meses depois, em 17 de maio – como indica a data gravada na placa em algarismos romanos.

Tito Schipa
Algumas semanas antes dele, já havia se apresentado na casa uma celebridade do canto nacional: Vicente Celestino, conhecido como “a voz orgulho do Brasil”. Nascido no Rio de Janeiro, filho de imigrantes calabreses, Celestino emocionava multidões interpretando com estilo dramático e vozeirão de tenor canções de sua autoria, como O Ébrio e Coração Materno. Fez tanto sucesso em Uberaba que a direção do Metrópole foi obrigada a abrir uma segunda apresentação, no dia seguinte, para atender à demanda do público.

“TITO SCHIPA (glória máxima da Arte Lírica) cantou neste teatro – Grande Hotel – Uberaba, em XVII-VII-MCMXLI”.
Foto: Antonio Carlos Prata

Embora também fosse tenor, Raffaele Attilio Amedeo Schipa era quase o oposto de Celestino. Nascido em 1888 na cidade italiana de Lecce, tinha um estilo de canto extremamente doce e sofisticado. Max Altman, um amante da música erudita que foi diretor do Teatro Municipal de São Paulo, descreveu como surpreendente o fato de que “um ‘tenor ligeiro’, como Schipa, tenha tido uma carreira tão longeva quanto frutífera, quando se inteira que era um cantor com demasiadas limitações vocais. Não possuía uma voz potente nem com tons musculares, tinha dificuldades com o floreado, não alcançava a emitir um dó de peito, faltava fundo a sua voz, e, ainda se fosse pouco, nem sequer contava com uma voz particularmente bela nem com potência. (…) Não obstante, é considerado um gênio. Seu instinto musical o colocou num lugar privilegiado da lírica mundial. Schipa, mais que nenhum outro cantor, soube tirar proveito de seus dons naturais, à base de engenho e inspiração, e criou um estilo original e personalíssimo de interpretação”.

O fato é que, em maio de 1941, Tito Schipa era uma astro internacional de primeira grandeza. Cantava em 11 idiomas diferentes, compunha canções em italiano e espanhol, havia gravado dezenas de discos, integrava o elenco da New York Metropolitan Opera e fazia enorme sucesso em nos EUA e em Buenos Aires. Poucos meses depois, tomou uma decisão desastrosa: voltou à Itália natal, onde tornou-se um artista de estimação do líder fascista Benito Mussolini. Embora tenha retornado à Nova York após o fim da Segunda Guerra Mundial, nunca mais fez o mesmo sucesso. Gravou pouco e dedicou-se ao ensino de música, até falecer em dezembro de 1965.

Na época Uberaba tinha 40 mil habitantes, a maior parte de baixo poder aquisitivo, muitos vivendo na zona rural. A decisão de pagar por uma uma apresentação de Schipa – que fazia uma temporada no Brasil – para cantar em uma casa de espetáculos no interior do País com mais de 1500 lugares, foi uma decisão arriscada da Empresa Cinematográfica São Luiz. Os ingressos foram vendidos a 20 mil reis, um bom dinheiro para a época. Não se sabe se a plateia lotou mas, segundo o escritor Guido Bilharinho, o evento teria dado prejuízo aos promotores. Uma ousadia que ficou imortalizada em bronze no saguão de um belo e histórico cinema, abandonado há décadas.


(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

A IGREJA DOS NEGROS QUE DESAPARECEU

Muitos uberabenses pensam que a bela igrejinha de Santa Rita, no morro defronte ao Mercado Municipal é a igreja mais antiga de Uberaba. Construída em 1854 e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico (IPHAN) desde 1939, a Santa Rita é a única sobrevivente das igrejas da época do império. Mas antes dela existiu a pioneira Capela de Santo Antônio e São Sebastião de Berava, erguida em 1818 na região onde está a praça Frei Eugênio, a primeira matriz da paróquia. E também a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que foi construída entre 1839 e 1842 no lado direito da Rua do Comércio, na época a principal rua da cidade, atual Artur Machado. Era uma igreja de duas torres em estilo colonial, relativamente grande e bonita, erguida encostas do morro onde hoje está a Av. Presidente Vargas.

Igreja do Rosário

A devoção a Nossa Senhora do Rosário é muito antiga. Teria surgido na Europa, entre os dominicanos, ainda na Idade Média. A primeira irmandade do Rosário foi criada em Colônia (Alemanha), em 1408. A ordem chegou ao Brasil em meados do século XVI, sendo a Irmandade dos Homens Pretos de Olinda a mais antiga do país.

Durante o período da escravidão, brancos e negros não podiam frequentar as mesmas igrejas – uma segregação que, na prática, persistiu por décadas, mesmo após a abolição em 1888. A pesquisadora Marina de Mello Souza, autora do livro “África e Brasil Africano” conta que, no tempo dos escravos, e ensino e a catequese de todo africano escravizado era de obrigação dos seus senhores. Com apoio desses proprietários, as comunidades negras se reuniram em irmandades leigas de devoção. Tanto a igreja católica quanto a administração colonial usavam a conversão à fé católica como instrumento de controle sobre a população negra, seus costumes e suas crenças – procurando “desafricanizar” a identidade cultural dos escravos.

Cabia aos membros das irmandades cuidar das festas de seu padroeiro, enterrar os irmãos mortos e ajudar as famílias dos falecidos que não possuíssem recursos. Os principais santos de devoção das irmandades dos “homens pretos”, segundo Souza, eram Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito.

Uberaba contava com uma grande quantidade de negros, escravos e libertos, no século XIX. O historiador Borges Sampaio relata que, no censo realizado em 1955, a vila de Uberaba tinha 1923 habitantes, sendo 1391 pessoas livres e 532 escravos, de ambos os sexos. A população do município era maior, pois a maioria dos habitantes vivia na zona rural. O censo de 1868 encontra 7681 moradores em toda a paróquia, sendo 1636 escravos. Entre os homens livres, havia significativa quantidade de mestiços e negros libertos.

Em 1839, coube ao padre Zeferino Batista Carmo (de quem já falamos aqui na coluna) propor que se erguesse na cidade uma igreja que atendesse a essa população, proibida de frequentar a Matriz. Construída com a mão de obra dos próprios negros, ela foi inaugurada oficialmente em 1842. Depois da Lei Áurea, a Igreja do Rosário continuou reunindo a comunidade negra, servindo de palco para as festas do 13 de Maio. Entre as comemorações que aconteciam na igreja no início do século XX, Borges Sampaio destaca “a festa anual dos pretos” e a “missa com ladainha em todos os sábados”, eventos que contavam com a participação da conceituada banda de música “União Uberabense”.

O surgimento de novas igrejas no bairro, como a Santa Rita e a São Domingos (1904) causou um lento abandono da igreja do Rosário. A Cúria Metropolitana deixou de cuidar da sua manutenção e o prédio entrou em decadência, num momento em que a Rua do Comércio vivia seu apogeu – não apenas como centro de negócios, mas também como porta de entrada da cidade para quem chegava pelo trem da Cia Mogiana. Seria preciso fazer uma obra cara de restauração, para a qual não havia recursos.

Diante dessa situação, o então prefeito Leopoldino de Oliveira decidiu demolir o antigo templo. Em 1927 a velha igreja foi removida para dar lugar a um largo e um jardim. Restaram dela poucas lembranças. Há apenas três fotos conhecidas: uma feita à distância por volta de 1895, do alto da Santa Terezinha, onde aparece de frente. Outra mostra apenas a escadaria que dava acesso às portas principais. Na última, ela é vista por trás, do alto do morro, já em mau estado de conservação, pouco antes de ser demolida.


(André Borges Lopes)



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Cidade de Uberaba



terça-feira, 8 de janeiro de 2019

André Borges Lopes

Há duas semanas, falei das uvas e vinhos do Padre Zeferino, destruídos pela repressão aos que apoiaram a Revolução Liberal mineira. Mas o movimento de 1842 também trouxe benefícios à região de Uberaba. Um dos mais duradouros foi a transferência do Colégio do Caraça que – para se afastar da agitação política – deixou às pressas as serras ao norte da antiga capital Ouro Preto e se instalou em uma fazenda em “Campo Belo da Farinha Podre”, atual cidade de Campina Verde.

Encravado nas montanhas da Serra do Espinhaço, o “Santuário do Caraça” é um ponto turístico histórico de Minas Gerais. Foi o primeiro grande empreendimento no Brasil da Congregação da Missão – ordem religiosa conhecida como ”lazaristas” ou “Irmão Vicentinos” – que, vinda de Portugal antes da independência, aqui chegou em 1818. Dois anos depois, receberam de Dom João VI as terras onde havia a “Ermida do Irmão Lourenço”, uma capela barroca e uma hospedaria para peregrinos que se aventuravam pela Serra do Caraça.

Em poucos anos, a ermida semiabandonada transformou-se num colégio interno e um seminário, inaugurados em 1921. Famoso pela seriedade e rigidez da disciplina, o Caraça tornou-se referência de ensino para a elite brasileira do século XIX. Ex-alunos fizeram carreira como governadores de estado, senadores, deputados, empresários e autoridades religiosas – entre eles dois presidentes da República: Afonso Pena e Artur Bernardes. Colégios particulares do Rio de Janeiro faziam anúncios destacando que seguiam o “método Caraça” de ensino científico, religioso e moral.

Nos anos após a independência, havia muita desconfiança política em relação a padres estrangeiros vinculados às ordens em que os superiores estavam na Europa. Mas não são claros os motivos que levaram à fuga dos lazaristas durante a Revolução que – por dois meses e dez dias – transformou Minas Gerais num campo de batalha entre liberais e conservadores do Império. Há versões que falam da adesão dos religiosos a um ou a outro lado do conflito, e do temor de retaliações. Fato é que, em 24 de agosto de 1842 – dias depois da derrota do rebelde Teófilo Otoni para forças comandadas pelo Duque de Caxias na batalha de Santa Luzia – o então diretor do colégio, Padre Antônio Viçoso (futuro Bispo de Mariana), transferiu-se para o Triângulo Mineiro carregando alunos, professores, escravos, livros e parte dos equipamentos. Uma viagem de 700 km em carroças e tropas de mulas, pelas estradas precárias da Província.

O colégio instalou-se em três grandes fazendas – Campo Belo, Fortaleza e Paraíso – na região de Campina Verde. Terras que haviam sido doadas aos Vicentinos em 1830 pelo fazendeiro João Batista de Sequeira e sua mulher Bárbara – descendente de índios Caiapós – que não tinham filhos nem herdeiros. Os doadores pediram em troca a construção de uma capela para celebração de missas aos domingos e dias santos, a construção de uma escola de “primeiras letras” e , quando houvesse condições, que fossem ministradas aulas de gramática latina e outros estudos “que o reverendíssimo superior julgar que se estabeleçam”.

A transferência do Caraça cumpriu por algum tempo as promessas. O “Colégio e Seminário de Campo Belo” foi pioneiro na difusão de cultura, educação e religião no Sertão da Farinha Podre – região esquecida do Império, de escassas escolas. Cumpriu também missões de catequese dos índios Caiapós, que ainda habitavam grandes áreas do Triângulo, e ofereceu uma alternativa de educação formal para os filhos dos donos de fazendas agrícolas e de criação de gado de Minas, Goiás e Mato Grosso. Relatos da época dizem que um terço dos alunos estudava gratuitamente, ou “pelo amor de Deus” nos termos de então.

O mais ilustre dos alunos dessa escola foi o escritor Bernardo Guimarães – autor dos romances “Escrava Isaura” e “O Seminarista” – que ambientou em Campo Belo um de seus contos: “Jupira”, história de amor e tragédia entre uma índia Caiapó e um português, publicada em 1872. Também foram alunos do colégio em Campina Verde o político Eduardo Montandom, futuro presidente da Província de Goiás, o advogado e compositor Antônio Cesário de Oliveira Filho (Major Cesário) e diversos intelectuais que fariam carreira como professores e profissionais liberais em Uberaba.

Em 1856, o Caraça retornou definitivamente à sede original, agora tendo à frente padres Vicentinos vindos da França. Foi o início de sua época de ouro como centro de formação da intelectualidade brasileira.



Cidade de Uberaba

CAPINÓPOLIS: UM MONSTRO E SEUS MISTÉRIOS

Em fevereiro de 1972, o norte do Triângulo Mineiro foi assombrado pelo medo. Assassinatos inexplicáveis em fazendas do entorno da cidade de Ituiutaba deixaram em pânico os moradores da zona rural. Cadáveres de homens e mulheres eram encontrados em fazendas, mortos por tiros de espingarda ou desfigurados por golpes de facão. Bezerros apareciam degolados nos pastos, sem que a polícia encontrasse qualquer pista dos autores dos crimes.

O pânico se espalhou pela região. Levantamentos da polícia davam indícios de uma trilha de mortes misteriosas, começando na região de Paracatu e descendo pelo vale do Rio Paranaíba até a cidade de Capinópolis, na época com cerca de 14 mil habitantes, a maioria na zona rural. Os pequenos destacamentos policiais eram impotentes para garantir a segurança da população e para encontrar os rastros dos assassinos.

O pânico logo se transformou em terror, com boatos correndo de boca em boca. Pessoas da região contavam ter avistado o “monstro” caminhando pelos campos e brejos: era descrito como um homem negro, alto e forte, de olhos vermelhos como o fogo. Sua habilidade de se esconder e fugir da polícia foi atribuída a poderes mágicos. O “monstro” teria um pacto com o diabo e se alimentaria do sangue dos bezerros. Disfarçava-se durante o dia na forma de um boi preto ou de um ninho de cupins. Podia virar fumaça e deslocar-se na velocidade do vento para cometer crimes que aconteciam no mesmo dia a dezenas de quilômetros de distância.

Notícias de mais de 12 mortes chamaram a atenção da grande imprensa, que enviou jornalistas. Jornais, rádio e televisão falavam sobre o “louco do Pantanal” ou “monstro de Capinópolis”, cobrando respostas. O governo de Minas Gerais montou uma operação de guerra, sob comando da Polícia Militar. Cerca de 200 homens do 4º Batalhão de Uberaba foram deslocados para a região sob comando do tenente-coronel Newton de Oliveira, que recebeu reforços de Uberlândia e Belo Horizonte. Caminhões com militares armados de fuzis e metralhadoras, acompanhados de cães rastreadores, cruzavam as estradas do Vale do Paranaíba, uma verdadeira caçada humana.

Nas pequenas cidades, o clima de suspense era ampliado pela chegada de moradores do campo, que fugiam em busca de segurança. Ninguém ousava dormir nas fazendas, as aulas foram suspensas nas escolas e as portas e janelas das casas passaram a ser trancadas a ferrolho e chave. Ruas ficavam desertas à noite mas, durante o dia, curiosos reuniam-se nas praças e bares para saber das novidades. Militares e policiais de passagem eram cercados por repórteres e moradores em busca de informações.

Em 3 de março, uma notícia na capa do jornal Correio Brasiliense contava que o “louco-assassino” havia escapado de um cerco formado por mais de 400 homens. Havia a suspeita de que se tratasse de um ou mais detentos, recentemente fugidos de uma penitenciária em Goiás. Cinco dias depois, o jornal contava que o “monstro” dera um drible nas forças policiais, dessa vez “conseguindo escapar de tiros de revolveres, metralhadoras e granadas de gás lacrimogênio”, reaparecendo logo depois em lugar muito distante.

Orlando Sabino Camargo.

Finalmente, em 10 de março, o maníaco acabou sendo encontrado e preso por 60 soldados da PM mineira, às margens do Rio Tijuco, em Ipiaçu. Identificado como Orlando Sabino Camargo, natural de Arapongas, no Paraná, foi levado ao centro de operações em Capinópolis, para ser apresentado a jornalistas e autoridades, que se amontoavam em torno da delegacia. Ao entrar na sala, causou enorme decepção. Orlando era um homem negro de idade indefinida, cabelos desgrenhados, magro e franzino, com pouco mais de 1,60 de altura. Descalço, vestia roupas surradas e tinha um ar assustado, que lembrava um adolescente com evidentes distúrbios mentais. Respondia com frases curtas às perguntas dos jornalistas e dos policiais. Segundo a polícia, havia assumindo a autoria de ao menos cinco dos crimes investigados. No interrogatório, era premiado com lascas de rapadura a cada resposta que dava. Levado ao Instituto de Medicina Legal de Uberaba, foi diagnosticado com oligofrenia, o que lhe rendeu mais de 38 anos de internação num manicômio judiciário. Libertado em 2011, viveu mais dois anos em uma casa de repouso, antes de morrer de infarto. 

Na época, pouca gente acreditou que um andarilho miserável com problemas mentais tivesse mesmo cometido todas aquelas atrocidades, mas a sua prisão encerrou a série de crimes. O Brasil vivia o período mais duro da ditadura militar de 1964. Órgãos de repressão do governo combatiam os grupos de oposição armada ao regime, entre eles os que tentavam montar um foco guerrilheiro na região do Rio Araguaia. Com a imprensa sob censura e a oposição mantida sob controle, questionar versões oficiais da polícia e de militares representava um sério risco, inclusive de vida. Só recentemente, a história oficial do “monstro de Capinópolis” passou a ser contestada. Falaremos disso na próxima semana.


(André Borges Lopes)




Cidade de Uberaba

ERAM OS UBERLANDENSES ASTRONAUTAS?

Uma das mais antigas frustrações dos brasileiros vem da falta de exuberância visual das descobertas arqueológicas nacionais. Nos países da América espanhola, sobram pirâmides, cidades e palácios de pedra, com histórias de salas cheias de ouro e prata. Aqui nos restaram pinturas rupestres, sambaquis de conchas e cacos de cerâmica de tribos extintas. Por vezes, mais antigas e tão importantes quanto palácios, mas nada que renda filmes de mistério e aventura ao estilo Indiana Jones.
Por isso, desde os tempos coloniais, sempre foram populares no Brasil as lendas arqueológicas. Histórias fantásticas de cidades perdidas nas serras do Planalto Central, montanhas cobertas de cristais brilhantes, o fantástico Eldorado na imensidão da selva amazônica. Um desses mitos ficou famoso: em 1839, o naturalista Manuel Lagos encontrou na Livraria Pública da Corte (atual Biblioteca Nacional) um manuscrito antigo e carcomido intitulado “Relação histórica de uma occulta, e grande povoação antiquíssima sem moradores”.

Tratava-se do relato de uma expedição de bandeirantes que, após vagar por anos pelos sertões da Bahia, chegara às ruínas de uma cidade abandonada, cheia de praças, palacetes e estátuas. Publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o texto ganhou fumos de seriedade. Nas décadas seguintes, expedições buscaram sem sucesso essa “Cidade Perdida da Bahia”, vagamente localizada entre a Chapada Diamantina e as Serras do Sincorá.

Anos antes dos fósseis de dinossauro começarem a revelar nossos reais tesouros paleontológicos, o Triângulo Mineiro teve um breve momento de glória no terreno das fábulas de civilizações perdidas. Graças ao jornal “O Estado de São Paulo” que, na edição do dia 09 de dezembro de 1916, publicou uma carta enviada à redação por um uberabense de nome Marçal Ferri. Na carta, Ferri contava ter recebido do Dr. José Camin, engenheiro e vereador na vizinha Uberabinha (atual Uberlândia), o relato de uma descoberta fantástica.

O “raizeiro” José Gomes da Fonseca, apelidado “Zé Creca”, buscava raízes nas terras de uma fazenda a seis léguas do centro da cidade, quando topou com uma gruta escondida, cuja entrada estava obstruída por espinheiros e infestada de marimbondos. Com ajuda de seu irmão, espantou os insetos, abriram a entrada e, munidos de tochas, adentraram num túnel com cem braças (180 metros) de extensão. No final, encontraram uma habitação abandonada com 14 cômodos. Havia mobília variada, feita em aroeira e “pintada com gosto”, além de “pratos de barro claro trazendo pinturas esquisitas”. Pelo estilo, os objetos “demonstravam ser do período pré-histórico, talvez até do período anti-diluviano”(sic).

O relato não parava ai: das paredes “pendiam, imitadas em massa duríssima, cabeças humanas e felinas ricamente enfeitadas com ornamentações em ouro”. Por fim, a cereja do bolo: descobriram 17 “cadáveres mumificados muito bem conservados (…) que, pelo que se pode concluir da sua extraordinária estatura, pertencem a um tipo de índios até hoje desconhecido”. Dr. Camin concluía dizendo que, na sua opinião, “o presente achado constitui para nossos historiadores e arqueólogos um fato de grande importância” a merecer uma investigação por cientistas competentes.

A carta saiu sem qualquer destaque ou comentário no matutino paulista, mas não passou batida pelos demais órgãos da imprensa. Nos dias seguintes, jornais do Rio de Janeiro e de várias cidades do País deram espaço, por vezes até na capa, para a assombrosa descoberta do raizeiro Zé Creca, citando como fonte o respeitável Estadão. Logo, o jornal foi inundado por mensagens em busca de informações. A notícia se espalhou pelo Triângulo e muitos curiosos foram atrás do Dr. Camin, querendo conhecer a tal gruta.

Pressionado, o Estadão mandou um correspondente à região apurar melhor a história. No dia 15 de dezembro, teve de publicar um desmentido. Nas fazendas do entorno, ninguém ouvira falar da gruta. O raizeiro Zé Gomes (que não era Fonseca e nem tinha o apelido Zé Creca) de fato existia, mas não fazia idéia do que se tratava. O Dr. José Camin negou a autoria do relato e garantiu que jamais havia escrito a carta para o tal Marçal Ferri de Uberaba, do qual ninguém dava notícia. Em resumo, algum gaiato havia “trollado” o Estadão em grande estilo – e o estrago já estava feito.

(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

domingo, 30 de dezembro de 2018

CAPINÓPOLIS: UM MONSTRO E SEUS MISTÉRIOS (II)

Há duas semanas, contei a história do “monstro de Capinópolis que assombrou o Triângulo Mineiro nos primeiros meses de 1972. Depois de um cerco policial que durou semanas e eletrizou a população do país – o caso chegou a ser relatado no Jornal Nacional e nas páginas de revista Veja – a polícia prendeu Orlando Sabino Camargo, um andarilho negro e franzino de 25 anos de idade com problemas mentais evidentes, que teria confessado a autoria de alguns dos crimes.

No final das contas, Orlando foi responsabilizado por um total de 25 assassinatos, sendo 13 em Minas Gerais e 12 em Goiás, além da morte de 19 bezerros. A maioria dos homicídios aconteceu na zona rural, sem presença de testemunhas, e nunca foi apresentada uma lista formal, com os nomes de todas as vítimas e as circunstâncias de cada morte. Examinado por uma junta médica, Orlando foi diagnosticado com oligofrenia e considerado inimputável. Acabou condenado pela Justiça a internação compulsória por tempo indeterminado em um manicômio judiciário na cidade de Barbacena, onde ficou detido por mais de 38 anos, até ser transferido para um lar de idosos, onde faleceu em 2013.

A prisão do “Monstro” colocou um fim nas mortes misteriosas no vale do Rio Paranaíba e deu resposta às cobranças da população. Mas muita gente não ficou convencida de que Orlando teria sido o responsável por todos os crimes. Interrogado pela polícia e por jornalistas, o suposto “assassino serial” limitava-se a confirmar a autoria das mortes com monossílabos e frases simples. Perguntado sobre sua motivação, dizia que “matava para comer”. Além disso, sua compleição física estava distante das fantasias criadas pela imprensa nos dias em que a região viveu a caçada humana: uma fera assustadora, com força e velocidade assombrosas, além de poderes fantásticos de dissimulação.
A morte dos bezerros e alguns dos homicídios se encaixam na narrativa de crimes praticados por alguém mentalmente perturbado. Mas houve casos de pessoas abatidas a tiros, em circunstâncias mal esclarecidas. Em ao menos um dos assassinatos, o do fazendeiro Oprínio do Nascimento, foi possível identificar o projétil responsável pela morte: uma bala .44, de uso exclusivo das forças de segurança, incompatível com a espingarda enferrujada que a polícia alegou ter apreendido com Orlando. Havia na sequência dos crimes a ele atribuídos alguns acontecidos com pouca diferença de tempo em lugares distantes, algo impossível para alguém que andava a pé vagando pelos campos, evitando estradas e já procurado pela polícia.

O Brasil vivia o período mais duro da ditadura de 1964, com a imprensa sob censura prévia, e ninguém ousava questionar versões oficiais. Mas um dos motivos da desconfiança era o tamanho do aparato mobilizado para capturar um criminoso tão singelo. O então governador mineiro Rondon Pacheco, natural de Uberlândia, envolveu-se diretamente na coordenação da buscas. No auge da perseguição, alguns relatos falam da participação de mais de mil agentes, entre soldados da Polícia Militar e investigadores da Civil, contando com o apoio do Exército, de aviões, helicópteros, cães rastreadores e de algumas dezenas de voluntários.

No final dos anos 1970, com a abertura política, alguns jornalistas começaram a questionar a história oficial. Em 1979, o uberabense Joaquim Borges divulgou a versão de que a perseguição a Orlando Sabino teria sido uma cortina de fumaça para encobrir as buscas por guerrilheiros de esquerda que estariam se escondendo na região do Pontal do Triângulo. Em 2011, Pedro Popó lançou o livro-reportagem “Monstro de Capinópolis” onde joga luz sobre a fragilidade das acusações. Em 2014, o jornalismo da rede de televisão SBT produziu uma reportagem sobre o caso, que pode ser encontrada no YouTube.

Orlando Sabino “ Monstro de Capinópolis”

Publicado em 2016 pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia, o segundo tomo do “Relatório da Comissão da Verdade do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba” traz os resultados das investigações sobre o assunto, sem que tenham sido encontradas respostas definitivas. Alguns pesquisadores consideram que a sequência de assassinatos possa ter servido para ocultar ajustes de contas pessoais e crimes por outras motivações, que ao final foram atribuídos a Orlando Sabino – deixando os verdadeiros autores impunes.

A tese da perseguição a guerrilheiros nunca foi devidamente comprovada. Mas há ao menos um indício bastante curioso. No meio da caçada ao “Monstro de Capinópolis”, as autoridades relataram à imprensa a prisão de um cidadão paraguaio de nome Gerardo Martinez Herrera, que despertou suspeitas ao procurar trabalho numa fazenda da região. Investigado, descobriu-se que o homem teria curso superior e havia sido militar no país vizinho. Tão rápido como surgiu, o tal Herrera desapareceu dos noticiários. Até hoje, a sua prisão é um mistério absoluto.


André Borges Lopes








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OS MENINOS DE SAIOTE DO IÊ-IÊ-IÊ

No ano de 1968 – aquele “que não terminou” no livro do jornalista Zuenir Ventura – a ditadura militar fechava cada vez mais os espaços de manifestação política. Mas por outro lado, a cultura brasileira vivia um dos seus grandes momentos. A cena musical se agitava com a disputa entre os jovens irreverentes da Jovem Guarda e os engajados da MPB, que dividiam corações e mentes nos grandes festivais. No cinema, Roberto Carlos em ritmo de aventura alternava as salas com o francês A Bela da Tarde, estreado por Catherine Deneuve.

Uma das principais palcos da capital carioca era o Canecão, misto de restaurante e casa de shows no bairro de Botafogo. Em março de 1968, a sensação da casa era um show que misturava bandas de rock & roll com malabaristas e dançarinas. Uma das bandas fazia furor, com rapazes tocando de saia uma música de alta qualidade. O nome dessa banda era Mugstones, e sua origem a pacata cidade mineira de Uberaba.

A roupa não era exatamente uma saia, mas sim um “kilt”, saiote escocês em pano xadrez vermelho. Os sete jovens eram José Raul Parada (saxofone), Luiz Humberto “Luizinho” Silveira (guitarra), Luiz “Luizão” Motta (baixo), Laerte de Oliveira (piston), Eurípedes “Pardal” de Oliveira (bateria), Braz “Bazzani” Lamboglia Júnior (guitarra), Márcio Antônio Vieira “Marc Antonov” (guitarra). Todos então na faixa dos vinte e poucos anos, colegas de infância e adolescência vivida no Triângulo Mineiro,

O conjunto surgira como as bandas de garagem dos anos 1960: um grupo de amigos com talento que se reunia para tocar os sucessos da época: o rock & roll e músicas da Jovem Guarda que bombava nas rádios e nas TVs. Conhecido como “Os Poligonais”, se apresentava nas praças da cidade e no clube da Associação Comercial. Chegaram a gravar um primeiro disco compacto. Em pouco tempo, ficou claro que Uberaba era pequena para o talento da banda. No comecinho de 1967, fizeram um grande show de despedida na praça Rui Barbosa e se mandaram para São Paulo.

As emissoras de televisão das capitais brigavam pela audiência entre os jovens com programas musicais de auditório. Na capital paulista, os Poligonais encantaram o produtor musical Glauco Ferreira que gostou do embalo do grupo, mas achou o visual pouco arrojado. O nome também tinha problemas: era usado por um outro conjunto de bossa nova.

Foi quando surgiu o “Mugstones”. No ano anterior, um boneco de pano vestido de saiote escocês, tornou-se uma febre ao ser adotado como mascote por celebridades como Wilson Simonal e Chico Buarque. O simpático “MUG” e um alfaiate talentoso deram origem ao uniforme do grupo. Em fevereiro de 1967, já com os saiotes e o novo nome, a banda estreou no Rio de Janeiro em grande estilo: fizeram um dos shows de abertura do cantor francês Johnny Halliday no ginásio do Maracanãzinho, ao lado de astros nacionais como o cantor Ronnie Von

A ousadia de um bando de marmanjos usando saias deu ao grupo destaque na mídia. Em abril, participaram do programa humorístico “Riso 40 graus” da TV Tupi. A qualidade musical e o repertório – do samba ao iê-iê-iê, com algumas pitadas de jazz – animou a gravadora Polydor a incluí-los no elenco. Em maio, chegou às lojas um compacto simples da banda, com duas músicas: A grande parada e Sozinho eu seguirei. Meses depois, foram incluídos num LP da coleção “Os novos reis do Yê Yê Yê”. O sucesso dos discos convenceu dono da boate “Candelabre” de Copacabana a contratar os moços para uma temporada.

No final de 1967 foi lançado o primeiro LP dos Mugstones, com uma foto da banda na capa. Segundo o livro Jovem Guarda em ritmo de aventura, o disco destacava-se pela originalidade: trazia covers de sucessos e de músicas originais do grupo, além arranjos muito bonitos para canções como Upa negrinho (de Edu Lobo e Guarnieri) e o clássico O sole mio. No ano seguinte, estrelas do espetáculo no Canecão, apareceram em reportagens em jornais e revistas. Viajaram pelo Brasil apresentando-se em Salvador, Recife, Belém do Pará e Porto Alegre. Morando no Rio, os jovens compraram uma grande caminhonete, que os transportava para shows na cidades do interior – uma das poucas bandas nacionais a contar com esse recurso.

Em 1969, em paralelo aos shows, o grupo fez uma participação o especial num dos episódios do filme “Como vai, vai bem?” do cineasta Alberto Salvá, contracenando com os atores Flavio Migliacio e Paulo José. Pouco tempo depois, com o fim da febre do Iê-Iê-Iê , o grupo se separou e cada um foi para o seu lado. Pardal e Luizinho continuaram ligados à música: o primeiro faleceu em Uberaba em 2015. Luizinho vive em Goiânia, mas às vezes aparece na nossa cidade com seu acordeon.

(André Borges Lopes)




Cidade de Uberaba

OS AGRADINHOS DE DONA CHIQUINHA

Em 1º de abril de 1964, um golpe militar depôs o presidente João Goulart, dando início a uma ditadura de duas décadas. Mas nos primeiros meses que se seguiram ao golpe, os uberabenses tiveram algo mais com o que se preocupar além da conturbada política nacional. Enquanto nas capitais sucediam-se cassações de mandato e prisões de opositores, a polícia de Uberaba estava preocupada em desbaratar uma história pavorosa: o caso dos “agradinhos” envenenados de Dona Chiquinha, que supostamente haviam deixado um rastro de doze mortos no bairro da Abadia.

A história tinha começado em fevereiro, quando uma moradora do bairro procurou a polícia para contar uma história assustadora. Maria Eduarda Costa, de 46 anos, era vizinha de Francisca Coelho do Nascimento, uma conhecida benzedeira do alto da Abadia. Na sua casa na rua Campos Sales, Dona Chiquinha, de 52 anos, fazia rezas, magias e ritos aparentemente ligados à umbanda. Dava conselhos amorosos e encomendava trabalhos para reunir amantes e espantar rivais no amor e nos negócios. Maria Eduarda acusava a vizinha de acelerar os resultados das mandingas mandando guloseimas temperadas com veneno de rato às vítimas de seus trabalhos: os “agradinhos”. Nessa toada, seria autora de meia dúzia de assassinatos.

Os policiais custaram a acreditar na história de Mariinha, moça um tanto confusa e perturbada. Mas ela tanto insistiu que o delegado José Geraldo decidiu colocar investigadores para esclarecer o caso. Dona Chiquinha, trazida para depor, surpreendentemente confirmou parte das acusações. Havia envenenado cinco pessoas: um marido, um amante, uma sogra, uma cunhada e a filha de uma rival. Para piorar a história, devolvia acusações e dizia que o total de mortos chegava a doze. Os outros sete por conta de Mariinha e de duas outras mulheres: Francisca Ferreira e Maria Helena, que haviam requisitado seus serviços. Os crimes teriam começado em 1957, envolvendo pessoas humildes dos bairros populares da cidade.

A notícia caiu como uma bomba. Jornais e os radialistas não falavam de outra coisa. Todo mundo correndo atrás das histórias das vítimas e questionando as autoridades: como uma série tão longa de crimes não despertou suspeitas da polícia? As quatro mulheres tiveram a prisão preventiva decretada por um juiz local e foram isoladas numa cela da cadeia local. Presas, Dona Chiquinha e Mariinha não se negaram a dar entrevistas à imprensa, na qual trocavam acusações e alimentavam os noticiários com detalhes picantes das histórias, que envolviam violência doméstica, triângulos amorosos, ciúmes e intrigas familiares.

A confissão das acusadas não bastava para embasar o processo, e a polícia teve que ir em busca de provas. Foi quando ficou evidente a confusão e a falta de cuidado das autoridades com os casos de mortes entre a população mais pobre. Das doze mortes confessadas, a polícia só encontrou registro oficial de oito, das demais não se tinha notícia. Os atestados de óbito de sete das oito vítimas nada diziam quanto a suspeitas de envenenamento, apontando outras causas da morte. Em apenas um caso, uma moça de 20 anos morta em 1962, o médico legista Dr. Jorge Furtado (então prefeito da cidade) havia solicitado exame das vísceras em Belo Horizonte. Dois anos depois, ninguém havia se preocupado em pedir de volta o resultado dessa análise que, descobriu-se então, confirmava a presença de arsênico.

Para complicar, uma revista na casa de dona Chiquinha não encontrou amostras do veneno. As tentativas de exumar os cadáveres revelaram uma enorme confusão no cemitério local: dos oito mortos, só foi possível localizar com segurança os restos mortais de um e a análise de laboratório foi inconclusiva. Exames médicos em pessoas que teriam supostamente sobrevivido às tentativas de envenenamento não revelaram muita coisa. E uma análise psiquiátrica feita por médicos da Faculdade de Medicina comprovou transtornos mentais na delatora Mariinha. Com evidências tão frágeis, não foi difícil aos advogados de defesa conseguir revogar a prisão no Tribunal de Justiça. Liberadas, as mulheres acusadas – com exceção da delatora – mudaram-se da cidade.

Dois anos depois, o repórter José Hamilton Ribeiro fez na Revista Realidade uma matéria sobre o caso. Segundo ele, o processo ainda se arrastava na Justiça e a promotoria tinha dúvidas se conseguiria reunir provas para levar o caso a júri popular. Como de costume, a historia dos agradinhos já havia sumido do noticiário para dar lugar a crimes mais recentes.

(André Borges Lopes)






Cidade de Uberaba

PEDRAS QUE CAEM DO CÉU

No início da noite do dia 7 de maio desse ano, um clarão riscou os céus da nossa cidade e chamou a atenção dos uberabenses. Avistado e fotografado também em outras localidades do Triângulo Mineiro e do Noroeste Paulista, os técnicos estimam que o fenômeno tenha sido causado por uma pequena rocha espacial de menos de um quilo, que entrou na atmosfera terrestre a cerca de 100 mil km/h de velocidade nas imediações da cidade paulista de Jaborandi. Atravessou a divisa com Minas Gerais e cruzou o firmamento a grande altitude, queimando pelo atrito com o ar por mais de 120 km até desaparecer sobre a cidade de Campo Florido. Várias pessoas registraram esse evento em fotos e vídeos, que podem ser vistos na Internet.

Dezenas de milhares de objetos entram na atmosfera terrestre todos os anos causando esses fenômenos, conhecidos como “queda de meteoro” ou ainda “estrela cadente”. Desses, somente pouco mais de uma centena atingem a superfície do planeta e ganham a denominação de “meteorito”. O mais famoso meteorito brasileiro é o Bedengó, que ganhou fama nos últimos dias por ter resistido à tragédia que se abateu sobre o Museu Nacional no Rio de Janeiro. Rocha metálica formada por 5,3 toneladas de ferro e níquel, foi descoberto em 1784 no sertão da Bahia, e transportado um século depois – a duras penas – para a antiga capital do Império.

O Bedengó é ainda hoje um dos maiores meteorito em exposição no mundo. No Brasil, só foi superado em tamanho por um gigantesco objeto metálico encontrado em 1875 na região de São Francisco do Sul, estado de Santa Catarina. Rico em níquel, a pedra foi quebrada em pedaços e vendida como minério para a Inglaterra. Pesquisadores estimam seu tamanho entre 7 e 25 toneladas.

Bem mais modesto é o meteorito “Uberaba”, que também fazia parte da coleção do museu incendiado, e ainda não sabemos se sobreviveu ao incêndio. Formado por 40 kg de rocha, caiu no dia 29 de junho de 1903 próximo à sede de uma fazenda nas imediações de nossa cidade, assustando muita gente e destelhando algumas casas. Apavorado com o fenômeno, o proprietário vendeu a fazenda. Antes de ser recolhido por cientistas, foi cultuado como uma pedra mística: conta-se que muitas pessoas rezavam no local da queda e quebravam pedaços para fazer chás com supostos poderes medicinais.

Outro meteorito que causou comoção em nossa cidade foi “Santa Luzia”, que caiu em 1919 próximo à pequena cidade goiana de mesmo nome (atual Luziânia, DF). O objeto metálico de quase duas toneladas causou um pequeno terremoto ao bater no solo e abrir uma cratera, mas o local da queda só foi descoberto alguns anos depois. Conta-se que o dono das terras vendeu o meteorito a um interessado que, sem conseguir carregá-lo, começou a vendê-lo em pedaços. Um desses fragmentos foi enviado para análise na Escola de Minas de Ouro Preto, onde constatou-se que era um objeto espacial do tipo ferroso. Diante disso, o governador goiano decidiu doá-lo ao Museu Nacional.

O transporte também foi penoso, e enfrentou alguma resistência da população local, que tinha o costume de fazer amuletos com fragmentos da “pedra que caiu do céu”. No dia 30 de agosto de 1928, ele começou a ser retirado da cratera e para ser levado em carro de boi até a estação de trem de mais próxima, na cidade de Vianópolis – onde só chegou em 17 de outubro. Nos dias seguintes, foi colocado em um trem especial que rumou para São Paulo parando nas principais cidades do caminho. No dia 23 de outubro de 1928 a pedra passou por Uberaba e o povo fez fila junto a estação da Mogiana para ter uma chance de ver o estranho objeto sideral – que também resistiu ao incêndio no Museu carioca.

Mas o evento mais famoso aconteceu no dia 3 de junho de 1956. Eram 17:30 de uma tarde fria de outono quando um estrondo e um clarão repentino aterrorizaram a população de Uberaba. Um objeto luminoso atravessou o céu da cidade de leste para oeste, em altíssima velocidade até sumir no horizonte, deixando uma impressionante trilha de vapores e fumaça. Minutos depois, o fotógrafo Wagner Schroden Jr. registrou o rastro no céu, iluminado pela luz do por do sol. A foto ganhou destaque no jornal Lavoura e Comércio do dia seguinte e correu o mundo. A revista “A Cigarra” fez uma matéria de três páginas sobre o evento.

A rocha seguiu se despedaçando em explosões sucessivas sobre o Pontal do Triângulo, e seu maior fragmento, com cerca de 100 kg, caiu a cerca de 70 km a noroeste da cidade de Paranaíba, no atual Mato Grosso do Sul. O meteorito “Paranaíba” também foi recolhido ao Museu Nacional, mas antes o padre da cidade mandou erigir uma cruz, marcando o local da queda.


(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

O VINHO UBERABENSE DO PADRE ZEFERINO

Há duas semanas, falei das uvas e vinhos do Padre Zeferino, destruídos pela repressão aos que apoiaram a Revolução Liberal mineira. Mas o movimento de 1842 também trouxe benefícios à região de Uberaba. Um dos mais duradouros foi a transferência do Colégio do Caraça que – para se afastar da agitação política – deixou às pressas as serras ao norte da antiga capital Ouro Preto e se instalou em uma fazenda em “Campo Belo da Farinha Podre”, atual cidade de Campina Verde.

Encravado nas montanhas da Serra do Espinhaço, o “Santuário do Caraça” é um ponto turístico histórico de Minas Gerais. Foi o primeiro grande empreendimento no Brasil da Congregação da Missão – ordem religiosa conhecida como ”lazaristas” ou “Irmão Vicentinos” – que, vinda de Portugal antes da independência, aqui chegou em 1818. Dois anos depois, receberam de Dom João VI as terras onde havia a “Ermida do Irmão Lourenço”, uma capela barroca e uma hospedaria para peregrinos que se aventuravam pela Serra do Caraça.

Em poucos anos, a ermida semiabandonada transformou-se num colégio interno e um seminário, inaugurados em 1921. Famoso pela seriedade e rigidez da disciplina, o Caraça tornou-se referência de ensino para a elite brasileira do século XIX. Ex-alunos fizeram carreira como governadores de estado, senadores, deputados, empresários e autoridades religiosas – entre eles dois presidentes da República: Afonso Pena e Artur Bernardes. Colégios particulares do Rio de Janeiro faziam anúncios destacando que seguiam o “método Caraça” de ensino científico, religioso e moral.

Nos anos após a independência, havia muita desconfiança política em relação a padres estrangeiros vinculados às ordens em que os superiores estavam na Europa. Mas não são claros os motivos que levaram à fuga dos lazaristas durante a Revolução que – por dois meses e dez dias – transformou Minas Gerais num campo de batalha entre liberais e conservadores do Império. Há versões que falam da adesão dos religiosos a um ou a outro lado do conflito, e do temor de retaliações. Fato é que, em 24 de agosto de 1842 – dias depois da derrota do rebelde Teófilo Otoni para forças comandadas pelo Duque de Caxias na batalha de Santa Luzia – o então diretor do colégio, Padre Antônio Viçoso (futuro Bispo de Mariana), transferiu-se para o Triângulo Mineiro carregando alunos, professores, escravos, livros e parte dos equipamentos. Uma viagem de 700 km em carroças e tropas de mulas, pelas estradas precárias da Província.

O colégio instalou-se em três grandes fazendas – Campo Belo, Fortaleza e Paraíso – na região de Campina Verde. Terras que haviam sido doadas aos Vicentinos em 1830 pelo fazendeiro João Batista de Sequeira e sua mulher Bárbara – descendente de índios Caiapós – que não tinham filhos nem herdeiros. Os doadores pediram em troca a construção de uma capela para celebração de missas aos domingos e dias santos, a construção de uma escola de “primeiras letras” e , quando houvesse condições, que fossem ministradas aulas de gramática latina e outros estudos “que o reverendíssimo superior julgar que se estabeleçam”.

A transferência do Caraça cumpriu por algum tempo as promessas. O “Colégio e Seminário de Campo Belo” foi pioneiro na difusão de cultura, educação e religião no Sertão da Farinha Podre – região esquecida do Império, de escassas escolas. Cumpriu também missões de catequese dos índios Caiapós, que ainda habitavam grandes áreas do Triângulo, e ofereceu uma alternativa de educação formal para os filhos dos donos de fazendas agrícolas e de criação de gado de Minas, Goiás e Mato Grosso. Relatos da época dizem que um terço dos alunos estudava gratuitamente, ou “pelo amor de Deus” nos termos de então.

O mais ilustre dos alunos dessa escola foi o escritor Bernardo Guimarães – autor dos romances “Escrava Isaura” e “O Seminarista” – que ambientou em Campo Belo um de seus contos: “Jupira”, história de amor e tragédia entre uma índia Caiapó e um português, publicada em 1872. Também foram alunos do colégio em Campina Verde o político Eduardo Montandom, futuro presidente da Província de Goiás, o advogado e compositor Antônio Cesário de Oliveira Filho (Major Cesário) e diversos intelectuais que fariam carreira como professores e profissionais liberais em Uberaba.
Em 1856, o Caraça retornou definitivamente à sede original, agora tendo à frente padres Vicentinos vindos da França. Foi o início de sua época de ouro como centro de formação da intelectualidade brasileira. 



(André Borges Lopes)



Cidade de Uberaba

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

UMA LENDA DO AUTOMOBILISMO EM UBERABA

Jovens que acompanham as disputas entre Lewis Hamilton e Sebastian Vetel provavelmente já ouviram seu nome. Mas fora do círculo de fãs da Fórmula 1, poucos se lembram de Juan Manuel Fangio, ídolo de Airton Senna e lenda histórica da principal categoria do automobilismo mundial ao conquistar cinco títulos (1951, 1954, 1955, 1956 e 1957) e dois vice-campeonatos (1950 e 1953). Desempenho que só seria superado quase meio século mais tarde, pelo heptacampeão alemão Michael Schumacher.

O jornal uberabense "O Triângulo" do dia 24 de junho de 1941
noticia a passagem pela cidade dos competidores da
"Prova Automobilística Presidente Getúlio Vargas".

O que bem pouca gente sabe é que o argentino Fangio conquistou a segunda vitória importante de sua carreira em uma corrida de longa distância disputada no Brasil. E que uma das etapas dessa prova teve como palco a cidade de Uberaba, onde os competidores passaram a noite de 23 para 24 de julho de 1941. Juan Manuel Fangio (nascido em 1911 na pequena cidade de Balcarce, próxima a Mar del Plata) estava em nossa cidade no dia em que completou 30 anos de idade. Ele começava a despontar nas pistas do país vizinho e havia sido convidado a disputar no Brasil o “I Grande Prêmio Automobilístico Getúlio Vargas”.

O cartaz promocional da prova, ainda com a data em maio A corrida acabou adiada para
os dias 22 a 28 de junho de 1941.

Foto do acervo do Arquivo Nacional

No início de 1941 a 2ª Guerra Mundial devastava a Europa. Depois de conquistar a França e desfechar uma campanha de bombardeios contra a Inglaterra, Hitler direcionava suas ambições para a União Soviética, invadida no final de junho. Argentina e Brasil, assim como os Estados Unidos, seguiam neutros no conflito. A guerra havia paralisado as atividades automobilísticas no velho continente, e os pilotos das Américas buscavam alternativas. Fangio, que estreara no automobilismo em 1936, corria há pouco mais de dois anos na categoria “Turismo Carretera”, que fazia muito sucesso em seu país: provas longas, disputadas em estradas de rodagem, com veículos de passeio adaptados. Em outubro de 1940 havia vencido sua primeira prova importante: o “Gran Premio Internacional del Norte”, disputado entre Buenos Aires e Lima, no Peru.

O Chevrolet Coupé 1940 de Juan Manuel Fangio alinhado para a largada em Vigario Geral, no Rio de Janeiro, na manhã do dia 22 de junho de 1940.

Foto do acervo do Arquivo Nacional.

O Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas em 1937. Nos anos anteriores, o automobilismo nacional havia deslanchado com a inauguração, no Rio de Janeiro, do “Circuito da Gávea”, sinuoso trajeto de rua entre o Leblon e São Conrado, onde eram disputadas provas perigosas e emocionantes. Pilotos como Manuel de Teffé, Chico Landi e o italiano Carlo Pintacuda começavam a ganhar fama. Em 1939, o Automóvel Clube do Brasil planejou uma prova turística de longa distância, não competitiva: o “Rallye Interestadual Presidente Getúlio Vargas”. Em 1940, foi aberto o Autódromo de Interlagos, em São Paulo.

Na foto da esquerda, feita no Rio de Janeiro, o embaixador argentino Labougle com os pilotos Oscar Garcez e Manuel Fangio (abraçados). À direita, o piloto uruguaio Jorge Mantero ao lado do seu Ford V-8.

Foto do acervo do Arquivo Nacional.

No início de 1941, anunciou-se para o mês de maio o “I Grande Prêmio Automobilístico Getúlio Vargas”: uma ambiciosa prova competitiva de 3.371 km extensão, dividida em sete etapas, com a maior parte do percurso cruzando as precárias estradas de terra de então. A prova acabou sendo adiada em um mês: teve início no dia 22 de junho no Rio de Janeiro. As etapas eram: 1) 22/06 – Rio de Janeiro - Belo Horizonte (541 Km.); 2) 23/06 – Belo Horizonte – Uberaba (606 Km.); 3) 24/06 – Uberaba – Goiânia (547 Km.); 4) 26/06 – Goiânia Barretos (592 Km.); 5) 27/06 – Barretos – Poços de Caldas (512 Km.); 6) 27/06 – Poços de Caldas – São Paulo (490 Km.); 7) 28/06 – São Paulo – Rio de Janeiro (443 Km.).

Quase todos os carros na disputa eram modelos norte-americanos – Fords, Chevrolets, Willys e Hudsons – “envenenados” pelos preparadores. Pilotos estrangeiros foram convidados a participar: da Argentina, vieram de navio Oscar Galvez e Juan Manuel Fangio, trazendo suas máquinas; do Uruguai, veio Jorge Mantero. Os argentinos também trouxeram os mecânicos que disputavam as provas a seu lado, no papel de navegadores: Galvez corria com o irmão Juan; Fangio com o amigo Antonio Elizalde, um excelente memorizador de caminhos.

Embora rivais nas pistas, Galvez e Fangio eram amigos e combinaram participar da prova como uma equipe, rachando as despesas e dividindo os prêmios que ganhassem. Galvez corria com um Ford V8 – o modelo favorito da maioria dos pilotos – enquanto Fangio trouxe seu Chevrolet 1940 verde escuro, com motor 6 cilindros – o mesmo com que vencera a prova anterior. Chegaram ao Brasil com boa antecedência e, na semana antes da corrida fizeram juntos uma viagem de reconhecimento das estradas. Convidados, nenhum dos pilotos brasileiros se interessou em acompanhá-los. Fangio também visitou os representantes brasileiros da Chevrolet em busca de patrocínio, que lhe foi negado: todos tinham certeza que um Ford venceria a prova. Sem recursos, conseguiu um empréstimo, colocando o carro como garantia.

Na manhã do dia 22 de junho, 39 competidores se enfileiraram para a largada no bairro de Vigário Geral. Os carros partiram em sequência, com a ordem sorteada, em intervalos de um minuto. O que valia era a corrida contra o relógio, somando-se os tempos de cada etapa. No primeiro dia, o Ford V8 de Oscar Galvez, deixou em segundo lugar o Chevrolet de Manuel Fangio, com pequena vantagem. O uruguaio Mantero chegou em Belo Horizonte com o terceiro melhor tempo. Nove competidores ficaram pelo caminho.

Em Uberaba encerrava-se a segunda e tinha início a terceira etapa da prova. Juan Manuel Fangio completou 30 anos nessa data e ganhou "de presente" a liderança da prova.

Juan Manuel Fangio venceu a terceira etapa (Uberaba-Goiânia) da "Prova Presidente Getúlio Vargas" no dia em que completou 30 anos. Em toda sua carreira, essa foi a única vitória em provas disputadas na data do seu aniversário.

Às 8:00 do dia 23, os carros largaram da capital mineira rumo a Uberaba obedecendo a ordem da classificação do dia anterior. Depois de cruzar Araxá e o Barreiro, tomaram a estrada de Sacramento, de onde foram a Conquista e chegaram em Uberaba pelo bairro Amoroso Costa. A linha de chegada era defronte à “casa de filtros” da Codau, onde Touring Club do Brasil montara a mesa de controle e um palanque. O Automóvel Clube de Uberaba providenciou a equipe de cronometristas: Achiles Riciopo, Lélio Sartini, Heitor Matos e Heli Mesquita. Leo Derenusson, revendedor da Ford em Uberaba, participou da organização.

  "Prova Presidente Getúlio Vargas" no Triângulo Mineiro, sobre um mapa de 1928. O trajeto utilizava as estradas de terra da época, frequentemente acompanhando os caminhos de trem.
Oscar Galvez foi o primeiro a cruzar a linha, às 14:35. Dez minutos depois chegou Fangio, que havia ultrapassado Galvez no trajeto, mas perdeu a ponta poucos quilômetros antes de Araxá por conta de um pneu furado. O Ford V-8 de Mantero ficou novamente em terceiro, seguido de perto pelo brasileiro Júlio Vieira, da cidade de Ribeirão Preto. Os carros vieram em cortejo até a praça Rui Barbosa, onde foram recebidos com festa defronte a prefeitura. Os pilotos se revezaram ao microfone da rádio local PRE-5, que transmitiu o encerramento da etapa. Radio-amadores locais retransmitiram os resultados para os jornais das capitais.
                                                                                              
 Na manhã dia 28 de junho de 1941, o Chevrolet Coupé 1940 de Fangio cruza a cidade de Bananal-SP, na sétima e última etapa da "Prova Presidente Getúlio Vargas".

No dia seguinte, Manuel Fangio completava 30 anos de idade e, por coincidência, tinha o mesmo número 30 em seu carro na prova. O jornal carioca “Correio da Manhã” conta que, às 8:00 uma “incalculável multidão” acompanhou a largada dos 19 carros restantes para a terceira etapa. A estrada velha de Uberlândia dava início ao trecho mais difícil do trajeto: estradinhas cortando fazendas, cheias de pontes estreitas e mata-burros traiçoeiros. Galvez partiu em primeiro e manteve a posição ao passar pelos povoados de Palestina e Buriti. Mas logo após cruzar a ponte sobre o Rio Tijuco, perdeu o controle do seu Ford e capotou espetacularmente – felizmente maiores danos ou ferimentos. Às 9:43, Fangio surpreendeu os uberlandenses ao despontar em primeiro na cidade vizinha. Oscar Galvez só passou 15 minutos mais tarde, em quinto lugar e com o teto do carro bastante amassado.
                                                                               
De volta ao Rio de Janeiro, Juan Manuel Fangio cruza a linha de chegada da última etapa da "Prova Presidente Getúlio Vargas", no bairro de Campinho. Embora tenha concluído essa etapa em segundo lugar, Fangio ganhou a prova na somatória dos tempos.

Foto do acervo do Arquivo Nacional

     
Galvez recuperou posições e chegou em Goiânia com o segundo melhor tempo, mas seu erro acabou sendo decisivo: Fangio dominou com tranquilidade a maior parte das etapas seguintes. Os dois argentinos sofreram ainda uma punição na sexta etapa (por um erro no trajeto) e Fangio ficou atrás do amigo na etapa final. Mas sagrou-se campeão na classificação geral da prova, que completou com um tempo de 43 horas e 12 minutos, média de velocidade de 86,347 km/h. Oscar Galvez ficou em segundo e o brasileiro Júlio Vieira em terceiro. Apenas nove competidores conseguiram completar o trajeto.
               
Antonio Elizalde e Juan Manuel Fangio sentados no capô do vitorioso
 Chevrolet Coupé 6 cilindros,
 em anúncio publicado no jornal carioca "A Noite" após a vitória.

Duas semanas antes, as concessionarias Chevrolet no Rio de Janeiro haviam negado patrocínio ao piloto argentino porque davam como certa a vitória dos favoritos Ford V-8 "Flathead".
                                                                 
Impecavelmente restaurado, o Chevrolet Coupé 1940 que venceu a "Prova Presidente Getúlio Vargas" em junho de 1941 é uma das jóias em exposição no Museo Juan Manuel Fangio, na cidade de Balgarce,vizinha ao balneário de Mar del Plata. Foto: Museo Fangio
      
Além do troféu e dos 15 contos de reis pelo primeiro lugar, Juan Manuel Fangio ganhou um prêmio extra. Nos dias seguintes, ele e seu mecânico Elizalde apareceram montados no valente Chevrolet, em anúncios pagos pelos arrependidos revendedores da marca nos jornais brasileiros. O carro vitorioso, impecavelmente restaurado, está hoje exposto no "Museo Fangio", em Balcarce.


(André Borges Lopes)