domingo, 30 de dezembro de 2018

OS AGRADINHOS DE DONA CHIQUINHA

Em 1º de abril de 1964, um golpe militar depôs o presidente João Goulart, dando início a uma ditadura de duas décadas. Mas nos primeiros meses que se seguiram ao golpe, os uberabenses tiveram algo mais com o que se preocupar além da conturbada política nacional. Enquanto nas capitais sucediam-se cassações de mandato e prisões de opositores, a polícia de Uberaba estava preocupada em desbaratar uma história pavorosa: o caso dos “agradinhos” envenenados de Dona Chiquinha, que supostamente haviam deixado um rastro de doze mortos no bairro da Abadia.

A história tinha começado em fevereiro, quando uma moradora do bairro procurou a polícia para contar uma história assustadora. Maria Eduarda Costa, de 46 anos, era vizinha de Francisca Coelho do Nascimento, uma conhecida benzedeira do alto da Abadia. Na sua casa na rua Campos Sales, Dona Chiquinha, de 52 anos, fazia rezas, magias e ritos aparentemente ligados à umbanda. Dava conselhos amorosos e encomendava trabalhos para reunir amantes e espantar rivais no amor e nos negócios. Maria Eduarda acusava a vizinha de acelerar os resultados das mandingas mandando guloseimas temperadas com veneno de rato às vítimas de seus trabalhos: os “agradinhos”. Nessa toada, seria autora de meia dúzia de assassinatos.

Os policiais custaram a acreditar na história de Mariinha, moça um tanto confusa e perturbada. Mas ela tanto insistiu que o delegado José Geraldo decidiu colocar investigadores para esclarecer o caso. Dona Chiquinha, trazida para depor, surpreendentemente confirmou parte das acusações. Havia envenenado cinco pessoas: um marido, um amante, uma sogra, uma cunhada e a filha de uma rival. Para piorar a história, devolvia acusações e dizia que o total de mortos chegava a doze. Os outros sete por conta de Mariinha e de duas outras mulheres: Francisca Ferreira e Maria Helena, que haviam requisitado seus serviços. Os crimes teriam começado em 1957, envolvendo pessoas humildes dos bairros populares da cidade.

A notícia caiu como uma bomba. Jornais e os radialistas não falavam de outra coisa. Todo mundo correndo atrás das histórias das vítimas e questionando as autoridades: como uma série tão longa de crimes não despertou suspeitas da polícia? As quatro mulheres tiveram a prisão preventiva decretada por um juiz local e foram isoladas numa cela da cadeia local. Presas, Dona Chiquinha e Mariinha não se negaram a dar entrevistas à imprensa, na qual trocavam acusações e alimentavam os noticiários com detalhes picantes das histórias, que envolviam violência doméstica, triângulos amorosos, ciúmes e intrigas familiares.

A confissão das acusadas não bastava para embasar o processo, e a polícia teve que ir em busca de provas. Foi quando ficou evidente a confusão e a falta de cuidado das autoridades com os casos de mortes entre a população mais pobre. Das doze mortes confessadas, a polícia só encontrou registro oficial de oito, das demais não se tinha notícia. Os atestados de óbito de sete das oito vítimas nada diziam quanto a suspeitas de envenenamento, apontando outras causas da morte. Em apenas um caso, uma moça de 20 anos morta em 1962, o médico legista Dr. Jorge Furtado (então prefeito da cidade) havia solicitado exame das vísceras em Belo Horizonte. Dois anos depois, ninguém havia se preocupado em pedir de volta o resultado dessa análise que, descobriu-se então, confirmava a presença de arsênico.

Para complicar, uma revista na casa de dona Chiquinha não encontrou amostras do veneno. As tentativas de exumar os cadáveres revelaram uma enorme confusão no cemitério local: dos oito mortos, só foi possível localizar com segurança os restos mortais de um e a análise de laboratório foi inconclusiva. Exames médicos em pessoas que teriam supostamente sobrevivido às tentativas de envenenamento não revelaram muita coisa. E uma análise psiquiátrica feita por médicos da Faculdade de Medicina comprovou transtornos mentais na delatora Mariinha. Com evidências tão frágeis, não foi difícil aos advogados de defesa conseguir revogar a prisão no Tribunal de Justiça. Liberadas, as mulheres acusadas – com exceção da delatora – mudaram-se da cidade.

Dois anos depois, o repórter José Hamilton Ribeiro fez na Revista Realidade uma matéria sobre o caso. Segundo ele, o processo ainda se arrastava na Justiça e a promotoria tinha dúvidas se conseguiria reunir provas para levar o caso a júri popular. Como de costume, a historia dos agradinhos já havia sumido do noticiário para dar lugar a crimes mais recentes.

(André Borges Lopes)






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