MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA
Os Fios das Tragédias
Guido Bilharinho
Os
ficcionistas de modo geral, quando verdadeiramente artistas, mais do que
representar ou recriar a vida, a criam em sua obra, aduzindo, como disse o
poeta (Arici Curvelo, em “Às Vezes”), mais vida às existentes, engendrando
novas realidades que se somam e expandem as realidades existentes.
É
o caso do filme Matou a Família e Foi ao
Cinema (1969), de Júlio Bressane.
Nele
desfila série de dramas familiares desaguados em tragédias.
A
partir do drama dantesco do filho assassinar friamente e a navalhadas seus pais
e, após, ir tranquilamente ao cinema, Bressane articula diversas ocorrências
semelhantes, sempre nos limites da organização familiar e sempre, também, em
cima da insatisfação ou da condição amorosa e sexual.
A
princípio poder-se-ia tentar ver nessa opção ficcional inspiração e influência
das obras de Nélson Rodrigues que perfilham semelhantes preocupações.
Nada
mais diferente, porém.
A
começar que a dramaticidade bressaniana é altamente elaborada, tanto do ponto
de vista concepcional quanto expressional, conforme binômio propugnado por
Hegel.
Ao
contrário, pois, da obra de Nélson Rodrigues, confrangida quase sempre em
estreitos limites conceituais, a de Bressane finca suas raízes nos arquétipos
universais mais autorizados da criação artística – não de simples recriação,
como dito – fundamentada na estrutura psicossomática mais profunda, geral e
permanente do ser humano.
E
o faz mediante construção estética na qual a narrativa apresenta alto grau de
sutileza, refratária à apelação usual no tratamento dessa temática.
Se
os protagonistas das estórias que cria perdem-se em atos violentos contra seus
entes próximos ou contra si próprios, a motivação que os leva a essas atitudes
drásticas – inimagináveis num contexto familiar – e a criação cinemática dos
fatos não descambam para descontrole emocional patológico, mantendo domínio de
seus elementos deflagradores tanto quanto das circunstâncias em que se
desenrolam e das modalidades que assumem.
Há
um fio condutor comum a todas essas ocorrências, seja a insatisfação sexual e
convivencial da personagem casada que se isola com a amiga em sua propriedade
de recreio e lazer; seja a procura de satisfazimento sexual emocional da jovem
com sua amiga; ou, ainda, o ambiente sufocante do lar do assassino dos pais e a
constante irritabilidade de seu pai; ou, finalmente, o paroxismo revoltoso do
marido relapso face às invectivas agressivas da esposa.
Essa
constante detectada em todos os episódios apresenta, no entanto,
características próprias em cada caso, não obstante seu extravamento
paroxístico e violento, condição ou peculiaridade da espécie humana quando
submetida a graus diversos de pressão e contrariedades viscerais, nos limites e
circunstâncias da formação e estrutura pessoal das personagens, como, aliás,
nem poderia deixar de ser, já que todo ser humano constitui pequeno mundo que
se articula, nos relacionamentos e convivências, com outros micro mundos
semelhantes.
Ressalta-se
no filme, além disso, a economia da construção ficcional, sintetizando em
poucas cenas a ambiência comportamental, convivencial e conflitiva das
personagens, perfeitamente contextualizada.
Por
fim, o jovem que assassina seus pais vai ao cinema assistir Perdidos de Amor (1953), dirigido por
Eurídes Ramos, com argumento de J.B. Tanko, película que possivelmente indica
(a conferir) a chave ficcional (ou uma delas) do filme ora comentado.
(do livro Seis Cineastas Brasileiros. Uberaba,
Instituto
Triangulino de Cultura, 2012)
______Matou a Família e Foi ao Cinema
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toda segunda-feira novo artigo
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Guido Bilharinho é advogado
atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000
e autor de livros de Literatura
(poesia, ficção e crítica literária), Cinema
(história e crítica), História (do
Brasil e regional).