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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

CENA DE SANGUE NUM CABARET DAS MERCÊS

A edição de domingo, dia 2 de agosto de 1936, do jornal “Diário Carioca” do Rio de Janeiro destacava na capa a cena escandalosa de um crime passional: “A Tiros e Machadadas Abateu as Rivais!”, dizia a manchete em letras garrafais. Para, em seguida, completar, “Trágica ocorrência em um cabaret de Uberaba. O marido infiel provocou a cena de sangue e desapareceu”. A ilustrar a notícia, um desenho recriando o momento fatal: uma jovem, vestindo um pesado casaco, dispara seu revólver contra um homem e duas mulheres sentados em uma mesa de bar, coberta por garrafas vazias. Na outra mão da assassina, uma pesada machadinha.

A matéria não é assinada. O jornal cita como fonte um anônimo correspondente em nossa cidade. O qual narra a história com dedicação de jornalista literário adiante do seu tempo. Segundo ele “as mulheres já desistiram de pertencer ao sexo fraco (...) ainda ontem, entre a dolência de um tango e a estridência de um fox, uma representante do sexo feminino virou em ‘frege’ um cabaret do bairro alto das Mercês, só pelo simples fato de estar seu esposo querido divertindo-se ‘inocentemente’ com algumas bailarinas daquela casa de boemia”. E contava em detalhes o enredo: o marido José Amâncio farreava em um “dancing” enquanto sua mulher Maria Amâncio passava a noite fria em vigília. Ensandecida pelo desrespeito do amado, a esposa tomou um carro e foi à casa de diversões. Viu no fundo do salão – em companhia das bailarinas Latif Facur e outra de apelido Mulata – o marido José, que “entregava-se a uma orgia desenfreada”.

Recorte do jornal “Diário Carioca" - Rio de janeiro, domingo, 2 de agosto de 1936.

"Diário Carioca" com a notícia do assassinato das mulheres no fantasioso Cabaret.
Maria, ensandecida pelo ódio, dirigiu-se à mesa. Tirou das vestes um revólver “fazendo-o vomitar toda sua carga contra as duas mulheres”. Em seguida, avançou com a machadinha sobre José, “que amedrontado foge, abandonando o campo de luta”. A esposa, então, despejou sua ira sobre as rivais, mutilando os cadáveres a machadadas. Para, em seguida, entregar-se aos guardas que acorreram à cena do crime. Uma história pronta para se tornar letra da canção “Ronda”, que o paulistano Paulo Vanzolini só iria compor em 1953. A partir do “Diário Carioca” a notícia foi reproduzida em jornais de todo o Brasil. Bárbaro desfecho da vingança de uma mulher honesta ofendida.

Vamos então em busca dos mesmos fatos nos arquivos do saudoso “Lavoura e Comércio”. E descobrimos que, ao menos na versão do sóbrio vespertino uberabense, as coisas não correram bem assim. A edição de sábado, 1º de agosto, traz na capa a notícia do crime, “A obra dementada do ciúme”, que teria acontecido à luz do dia, e não de madrugada. O marido infiel não era José Amâncio, mas sim seu irmão Benedito – de quem José era sócio em um comércio na praça Dom Eduardo, esquina com a Rua Cassu. Já a esposa traída, Maria Cristina de Souza, “possuidora de temperamento exageradamente emotivo” e de “um lar feliz” – ao menos no entender dos redatores – “enveredou pelos caminhos tortuosos do crime, esquecida de que a sua maior e única glória é a mansuetude, a permanência devotada dentro do lar”.

Descobre-se ainda que a suposta “bailarina” Latif Palis Facur seria, na verdade, uma viúva – residente na Rua Barão de Ponte Alta e mãe de duas meninas – que, há anos, mantinha um caso amoroso com Benedito. Num tempo de dificuldade para os amores clandestinos, a dupla encontrava guarida para seus encontros furtivos na residência de outra viúva: a costureira Francisca Teixeira de Carvalho, de apelido “Mulata”, dona de uma casinha modesta na rua 15 de Junho, no alto das Mercês. Não se sabe se alguém contou ou se Maria Cristina descobriu por conta própria as travessuras do esposo. O fato é que, no início da tarde de quinta-feira, 30 de julho, Maria viu Latif Facur passando demoradamente defronte à loja da praça. Em seguida, o marido saiu, alegando que ia visitar um amigo doente.

Com sede de vingança e armada com um revolver, Maria saiu atrás. Perdeu Benedito de vista perto do campo do Uberaba Esporte mas, já conhecedora de seus segredos, dirigiu-se à alcova da rua 15 de Julho. Lá chegando, não perguntou nem discutiu: matou com três tiros a dona da casa que lhe abrira a porta. Latif, que estava acompanhada por uma das filhas, tentou refugiar-se na cozinha, mas teve igual sorte. Não encontrando o marido infiel, Maria fugiu da cena do crime e foi se esconder em uma fazenda, entregando-se à polícia alguns dias depois. No jornal uberabense, sequer é mencionada a tal machadinha. Para os dias de hoje, pouco mais que um crime banal, em cenário modesto. Que transformou-se em luxuoso enredo de samba-canção na imprensa carioca, por obra e graça de um redator criativo.


(André Borges Lopes)