quarta-feira, 17 de abril de 2019

Nasci

Sempre desejei nascer.

Antes de ser, já queria ser.

Apesar dos anticoncepcionais da auto-censura, nasci.

Sou um pensamento-neném, precocemente envelhecido.

Sinto-me umedecido pelo líquido amniótico que me envolvia
no ventre cefálico que me gerou.

Nasci mutilado, revoltado. Rebelde, contraditório.

Rebelde, cortei a linha que me amarrava ao útero materno,
na escuridão indecisa e morna de uma eterna e segura dependência, e rumei para a insegurança, para o mistério, para a dúvida.

Nasci. Mas tive vergonha de ser um pensamento nu.

Procurei vestir-me com a roupagem fosforescente da palavra.

Passei do mundo incolor da abstração ao mundo acariciante do som e da cor. Por fatalidade fui um mal nascido.

Nasci plebeu, sem genealogia histórica e sem linha.

Nasci rebelde.

Detesto linhas que prendem.

Odeio qualquer palavra que destile opressão e limite.

Há linhas que prendem, oprimem e escravizam.

Odeio a linha que prende o peixe livre das grandes águas.

A linha que amarra a pipa livre no vasto céu.

A linha fria de aço que segura o trem
e o submete a um destino marcado e sem opções.
A linha que amarra o navio ao cais
e lhe nega o perigo da viagem.

A linha gráfica que encurrala o espaço indefinido na dimensão
da figura. A linha mentirosamente azul
que fecha o horizonte, num círculo. A linha luminosamente reta
que prende a estrela a meus olhos e a torna meu objeto.

Odeio linhas moralísticas que cindem dogmaticamente o certo
e o errado.

As linhas friamente lógicas
que dividem a verdade e o erro. As linhas freneticamente
subjetivas que separam o belo e o feio.

Tenho nojo das linhas que escravizam o homem livre
aos padrões ideológicos ou sociais.

Detesto linhas. Odeio limites.

Adoro o infinito, o intangível, o inacessível, o inefável.

Nasci rebelde e iconoclasta. Meu prazer é quebrar ídolos.

Gosto de estuprar virgens tradicionais. Violentar certezas absolutas. Amo as defenestrações. Adoro engravidar formas novas.

O novo me fascina.

Por fatalidade nasci precocemente envelhecido.

Tremendamente velho. Incapaz de fecundar.

Sinto-me enjaulado no sudário escuro de palavras gastas e envelhecidas.

Esclerosadas. Algemadas à linha etimológica da origem.

Quero falar a língua virgem das palavras inexistentes,
mas as vestes macias e empoeiradas dos vocábulos desgastados efeminam minha força, castram minha masculinidade.

Sinto as dores do parto da noite que tenta dar à luz a aurora
e pare apenas uma candeia bruxuleante.

A fosforescência da palavra gasta dissolve em estilhaços a força luminosa do relâmpago. Queria falar a língua do raio e da borrasca e apenas balbucio a linguagem medrosa da brisa.

"Novo-velho, velho-novo", aspirando ao futuro mas algemado ao passado, garanhão castrado, viril efeminado, vivo a contradição e o absurdo.

Quero ser a verdade e dissolvo-me na mentira.

A austeridade é meu programa, mas o luxo me fascina.

Fiz da liberdade a minha deusa, mas a escravidão cômoda me alicia.

Quero assumir mas a responsabilidade me amedronta.

Quero viver perigosamente mas o risco me apavora.
Quero-me livre mas sinto-me algemado.

Sado-masoquista, quero perfurar e ser perfurado.

Sou eu, e não sou eu.

Sinto-me singular e múltiplo, uno e dividido, inteiro e fraturado.

Não me auto-identifico. Já sou, já não sou. Apenas existo.

Eu sou a ideia-contradição. A lógica. A irrealidade do real,
sou apenas o dever de pensar.

Sou o paradoxo - Sou o HOMEM.


( Poeminha do saudoso prof. Paulo Rodrigues, da antiga Fista, em plena crise existencialista, em 1979)


Cidade de Uberaba