Na década de 1970, poucos em Uberaba não conheciam Delcides, o Delcidão, chamado com respeito e carinho de Xerife da rua 7 de Abril. Pedreiro de ofício, homem de mãos calejadas, era presença constante no meio do quarteirão onde morava, numa casa simples de portalzinho de ferro e duas janelas sempre abertas para a rua.
Era um homem forte, com postura de autoridade, mas generoso no trato. Os vizinhos o tinham em alta conta, e bastava aparecer na porta com seu inseparável chapéu, ora um Panamá, ora uma boina, para que logo puxassem conversa.
Numa manhã qualquer, Delcides estava no bar do Seu João, na esquina com a Barão de Induberaba, em companhia do professor Paulo Rodrigues. O bar seguia sua rotina: fregueses tomando café, sinuqueiros batendo bola, cervejas geladas nas mesas e o burburinho típico do bairro.
Foi então que entrou um homem negro, trazendo uma mala gasta e o cansaço estampado no rosto. Usava uma boina simples, como se fosse parte dele. Pediu água, comentou que estava com fome e, em seguida, lançou a pergunta que gelou o ambiente:
— O senhor sabe me dizer se aqui mora alguém chamado Delcides?
As descrições que deu batiam em cheio com a vida de Delcidão. Ele respirou fundo, engoliu seco e, disfarçando, passou a investigar: perguntou o nome do pai, da mãe, detalhes da família. O homem respondeu tudo com precisão.
Chamava-se Firmino. E contou que, ao longo da vida, soube que tinha um irmão em Uberaba, na rua Sete de Abril. Agora, já envelhecido, decidira procurá-lo.
Os olhares no bar se cruzaram. O professor Paulo já tinha desvendado a cena; "Seu João Serrano" também desconfiava. Os fregueses tentavam disfarçar a atenção, mas todos sabiam que algo grande estava acontecendo.
Delcides, mesmo acostumado ao peso das pedras e ao esforço do trabalho, sentia os olhos marejados. Perguntou:
— Você já tomou café da manhã?
— Ainda não. Primeiro precisava encontrar meu irmão, respondeu o recém-chegado.
Foi então que Delcides se levantou, pegou a mala e disse:
— Vamos pra minha casa. Lá você vai descansar, tomar café, ajeitar as coisas. É humilde, mas é minha.
E assim seguiram até a casa do portalzinho de ferro e das duas janelas. Antes de entrar, Delcides ajeitou o chapéu, olhou firme para o visitante e revelou:
— O irmão que você procura… sou eu.
O abraço foi imediato, desfeito em lágrimas. Dois homens já feitos, chorando como crianças no meio da rua. Dali em diante, tornou-se comum vê-los sentados na calçada: Delcides com seu chapéu Panamá ou boina, Firmino sempre de boina, conversando por horas, como se tentassem recuperar cada minuto do tempo perdido.
E os vizinhos, que tanto gostavam dos dois, se alegravam em vê-los juntos.
Os anos passaram. Primeiro partiu Firmino. Depois, Delcidão, o pedreiro forte e generoso, o Xerife da rua Sete de Abril, também partiu.
Mas quem presenciou aquele reencontro nos anos 1970 jamais esqueceu a força daquele abraço, simples e grandioso como a própria vida.
(Antônio Carlos Prata).
