quarta-feira, 3 de junho de 2020

Cinema falado e revolução

Popularizado na Europa a partir de 1895, pelos irmão franceses Auguste e Louis Lumière, o cinema chegou ao Brasil logo no ano seguinte, mas demorou um bom tanto para dar as caras em Uberaba. No seu livro “Coisas que me contaram, crônicas que escrevi”, o jornalista Jorge Nabut relata que as notícias mais antigas de exibições de filmes na cidade datam de 1908 – ocasião em que o Sr. José Pires Monteiro, da vizinha cidade de Franca, teria feito algumas projeções na sala do então Teatro São Luiz, na praça Rui Barbosa. Nas décadas seguintes, a cidade conviveu com diversas salas de espetáculos, a maioria de vida curta. Uma das famosas foi o Cine Teatro Polytheama, instalado num amplo galpão do início da Rua Manoel Borges, local onde hoje funciona a Lojas Brasileiras. O próprio São Luiz sofreu extensa reforma e foi convertido em cine-teatro: sobreviveu por décadas, até ser definitivamente fechado em 2008.

Nos 20 anos seguintes, o mundo viveu o apogeu do cinema mudo. Nas produções mais sofisticadas, enquanto as imagens eram projetadas na tela, músicos executavam ao vivo partituras especialmente compostas para acompanhar as películas. Vários instrumentistas que mais tarde se consagraram garantiam assim parte do seu ganha-pão. Nas melhores salas de cinema, algumas orquestras chegaram a ganhar fama. As películas vinham em rolos que tinham duração de 15 a 20 minutos e, como a maioria dos cinemas dispunha de apenas um único projetor, as sessões tinham breves intervalos para troca dos rolos e pausa para a orquestra. Os primeiros filmes com trilha sonora integrada surgiram só no final de 1927, nos Estados Unidos.

Segundo o pesquisador e cinéfilo Guido Bilharinho, autor da obra “Uberaba: dois séculos de história”, o cinema “falado e sincronizado” teria estreado na cidade em 7 de março de 1930. O Brasil estava na ocasião em plena ebulição política. Após uma acirrada disputa, o candidato situacionista Júlio Prestes, ex-governador de São Paulo, acabara de derrotar a chapa de oposição formada pelo gaúcho Getúlio Vargas e o paraibano João Pessoa, numa eleição presidencial permeada por denúncias de fraudes e arbitrariedades. Vargas havia ganho em Uberaba e em boa parte de Minas Gerais. A Velha República estava prestes a ruir.

Bilharinho, com base em notícia publicada pelo jornal local “A Concentração” nos conta que a novidade cinematográfica foi apresentada pela primeira vez no Cine Alhambra, que funcionava desde outubro de 1928 no primeiro quarteirão da rua Artur Machado. Propriedade da empresa Damiani, Bossini & Cia, era então a sala mais sofisticada da cidade. O filme exibido foi “Paris de Contrabando” (The Rush Hour), comédia da Paramount com Marie Prevost e Harisson Ford. A notícia procede, mas a história é um pouco mais complicada. 

Produção de 1928, The Rush Hour é na verdade um filme mudo. Segundo o jornal “Lavoura e Comércio”, após a exibição desse filme o artista Umberto Marsicano, contratado pelo Alhambra, iria apresentar uma série de curta-metragens sonoros. O público, que lotou a sala para conhecer a novidade, teve enorme decepção ao descobrir que tratava-se de um simulacro: quatro filmes mudos sincronizados de forma rudimentar com uma trilha sonora precária que saía de um gramofone. A ira só não foi maior porque Sebastião Braz e Teobaldo Bosini, donos do Alhambra, convenceram o público de que eles também haviam comprado gato por lebre.

Seis meses depois, em 1º de agosto, o Brasil recebeu atônito a notícia do assassinato do ex-candidato João Pessoa, levando a tensão política às alturas. Nesse mesmo dia, os donos do Alhambra anunciaram que haviam comprado por 90 contos de reis um equipamento completo de cinema falado da marca “RCA Photophone”, com dois projetores e capacidade de sincronização com discos e fitas sonoras. O mesmo equipamento que já era usado com sucesso no glamoroso Teatro Pedro II, em Ribeirão Preto. A estreia em Uberaba foi programada para o final de setembro, mas o país pegou fogo com a escalada das tensões, que logo desaguaram nas batalhas armadas da Revolução de 1930.

Getúlio Vargas já havia tomado posse à frente do governo provisório quando, finalmente, a promessa frustrada em março pode ser concretizada. Em duas sessões lotadas, às 7h30 e 9h30 da noite de 13 de novembro de 1930, o filme “Alvorada de Amor” (The Love Parade) – uma comédia musical norte-americana com o astro Maurice Chevalier, Jannet Mac Donald e Lillian Roth – marcou a entrada da Princesinha do Sertão na era do cinema sonoro.

(André Borges Lopes / Uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna Binóculo Reverso do Jornal de Uberaba em 24/05/2020)


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