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domingo, 2 de julho de 2017

“ETA FUMINHO BOM”

Mário Palmério
Hugo Prata

Mário Palmério, aos 18 anos, era um latagão meio desajeitado, muito branco, sabido, de pés e mãos enormes, com um bigodinho ralo e uma aparência de cantor de tangos. Caiu nas graças do Cel. João Prata, que sempre o levava consigo quando ia para sua fazenda. Era saber que o varapau estava disponível e lá vinha o convite: “Tranca, vamos passa uns dias na chácara”. Mário apreciava o velho e aceitava o convite. Iam num Fordinho 29. Na frente, Mário guiando, e, ao lado, o coronel que descalçava a botina e ia coçando os dedos. No banco de trás, bem espremido, ia o restante da família, Tuta, Teté e Lolô, esposa, cunhada e filho.

João Prata gostava de um bom cigarrinho de palha e dedicava bom tempo fazendo um. Aliás, o fazer um cigarro já faz parte do prazer. É como um pescador preparando sua tralha, ou uma mocinha se arrumando para o baile. O coronel picava cuidadosamente o fumo e o desfiava com volúpia, antegozando o prazer da fumacinha de daqui a pouco. A palha era alisada, bolinada com o canivete Rogers, e recebia o fumo, espalhado uniformemente com o indicador. Com ajuda dos polegares, o enrolava em um cilindro perfeito. Uma lambida na beirada, para colá-lo, e pronto. Era só acender e sorver a fumacinha cheirosa. Mas isto nem sempre tinha um bom final. Era terminar de enrolar e o Mário, que ao lado a tudo assistia, se babando em elogios, vinha com costumeira lenga-lenga. “Seu João, que coisa impressionante, é o cigarro mais bem feito que já ví. O Senhor é um artista. Dá prá mim esta obra-prima. Quero ter o prazer de fumá-la.” O velho negaceava, mas sempre cedia.

Aquilo foi cansando o coronel, que se esmerava no capricho, mas quem usufria do êxtase era o Mário. Ruminava uma vingança.

Uma tarde, quando Mário voltava de um passeio a cavalo, o veterano coronel começou a lenta operação de fazer um cigarrinho. Só que substituiu o bom fumo goiano por autêntica bosta seca de vaca. Mário chegou no justo momento do arremate e começou a ladainha: “Seu João, o rei do cigarrinho de palha, não vou permitir que fume esta jóia. Ela foi feita para seu amigo aqui que não tem sua maestria, mas tem um paladar apurado. Eu mereço”. O velho matreiro, cheio de baldas, refugou, negaceou, negou estribo, lamuriou e, protestando, cedeu a tão falada obra-prima. O latagão acendeu o cigarro, tragou lentamente, expeliu a fumaça e veio com a lenga-lenga de sempre: “Divino. Manjar dos deuses. Seu João o artista do tabaco. Eta fuminho bom.”

O coronel gozava interiormente a vingança planejada e foi com sorriso cruel que deu sua ferroada mortal: “Mário, seu tranca, você não entende de coisa nenhuma. Nem de bosta de vaca.”
Retirado do livro Causos: “a senhora dona galinha e seus amores”, de Hugo Prata.
Referência bibliográfica

PRATA, Hugo. Causos: “a senhora dona galinha e seus amores”. Uberaba: Martins, 199?. p. 19-20.