Mostrando postagens com marcador Crepúsculo dos Ídolos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crepúsculo dos Ídolos. Mostrar todas as postagens

domingo, 3 de janeiro de 2021

SÓCRATES, AUTOR DE AUTOAJUDA? (II, Conclusão)

A respeito do diálogo mantido por Sócrates com Aristodemo, Xenofonte conclui que “assim falando, Sócrates ensinava seus discípulos a se absterem de toda a ação ímpia, injusta e reprovável” (idem, idem, p. 51).

Sócrates exorta seus interlocutores a cultivar a temperança (p. 53), a se desviar da fatuidade (p. 57), de que “não há mais belo caminho para a glória que um homem de bem ser o que realmente deseja parecer” (p. 57) ou “nada haver mais perigoso para um homem que dar-se por mais rico, mais forte, mais corajoso do que realmente é” (p. 57).

Além disso, “Sócrates afazia seus discípulos à abstinência em face da boa carne, do vinho, da lubricidade, do sono, e à resistência ao frio, ao calor, à fadiga” (p. 61), ao respeito aos pais (p. 67), à amizade (p. 71, 75 e 77) ou que “as almas tacanhas compram-se com presentes. As almas generosas conquistam-se com mostras de amizade” (p. 72).

No decorrer de seus diversos diálogos, Sócrates aconselha, exorta e opina sobre série de questões, comportamentais a maioria, como trabalho, estudo, saber, participação política, coragem, inveja (“apelidando invejosos os que se afligem com a felicidade dos amigos”, p. 118), ociosidade, má constituição física e fortalecimento do corpo por meio de exercícios, grosseria, viver com moderação, presunção, bens e males, felicidade, justiça, prática do bem, sabedoria, coragem, piedade, beleza, utilidade dos conhecimentos, etc..

O que caracteriza mais fortemente a pregação socrática é, pois, a felicidade das pessoas e a utilidade das atitudes e comportamentos, princípios básicos da autoajuda, sendo sua própria existência e pregação balizadas por essas diretrizes, a ponto de Xenofonte observar que “tão útil era Sócrates em todas as ocasiões e de todas as maneiras, que até as inteligências medíocres facilmente compreendiam nada haver mais vantajoso que seu comércio e frequentação” (op. cit., p. 133).

Na introdução ao volume sobre Platão da coleção “Os Pensadores”, reconhece-se por isso, que Sócrates “se preocupava antes com o desencadeamento do conhecimento de si mesmo e não propriamente com definições de conceitos” (p. XI), sendo que filosofar é principalmente definir, conceituar, teorizar.

Já nos diálogos platônicos de O Banquete e Fédon, por exemplo, nos quais Sócrates é personagem e discorre longa e largamente sobre diversas questões perspectivadas teórica e genericamente, percebe-se sua diametral diferença com os diálogos simples colhidos por Xenofonte, que pretende o mais possível ser fiel às palavras socráticas (“Como Sócrates me parecia ser útil a seus discípulos, já pelo procedimento, já pela palavra, eis o que passo a relatar, alinhavando o melhor que possa minhas recordações”, p. 45).

À evidência, conforme registrado nos estudos respectivos, essa diferença demonstra que o Sócrates dos diálogos platônicos é tão só Platão, que desenvolve teorização própria em conteúdo e profundidade conceitual muito além da exposta nos diálogos socráticos de Xenofonte.

*

Por sua prática conselheiral contumaz, Sócrates é ridicularizado por Aristófanes em As Nuvens (constante do mesmo volume da coleção citada), a ponto do Coro, dirigindo-se a ele, apodá-lo de “sacerdote de tolices sutilíssimas” e acusá-lo de que “se pavoneia pelas estradas, lança os olhos de lado, anda descalço, suporta muitos males, e, por nossa causa, finge importância” (versículo 360, p. 184), até atingir a vexaminosa passagem ínsita entre os versículos 385 a 395 (p. 196).

*

A natureza de autoajuda da militância e prédica de Sócrates foi observada e inferida por Nietzsche, quando afirma que Sócrates “viu o que estava por trás de seus atenienses nobres; compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era mais um caso excepcional. A mesma espécie de degenerescência se preparava por toda parte em silêncio: a velha Atenas caminhava para o fim. E Sócrates entendeu que todo mundo necessitava dele – de seu remédio, sua cura, seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos em anarquia; por toda parte se estava a cinco passos do excesso [....] Quando aquele fisionomista [Zópiro, considerado criador do método fisiognômico, segundo Rubens Rodrigues Torres Filho] revelara a Sócrates quem ele era, um antro de maus apetites, o grande ironista deixou escapar uma palavra, que dá a chave para entendê-lo. “Isso é verdade”, disse ele, “mas eu me tornei senhor sobre todos eles”. Como se tornou Sócrates senhor sobre si? Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, aquele que mais saltava aos olhos, daquilo que naquele tempo começava a se tornar a indigência geral: que ninguém mais era senhor sobre si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele fascinava por ser esse caso extremo – sua amedrontadora feiúra enunciava esse caso para cada olho: ele fascinava ainda mais fortemente, como é fácil entender, como resposta, como solução, como aparência de cura para esse caso [....] ele parecia ser um médico, um salvador.” (Crepúsculo dos Ídolos, § 9 e 11, in Nietzsche, coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 330).


Guido Bilharinho - Advogado em Uberaba e autor de livros de literatura, cinema, fotografia, estudos brasileiros, História do Brasil e regional editados em papel e, desde setembro/2017, um livro por mês no blog https://guidobilharinho.blogspot.com.br/