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sábado, 28 de dezembro de 2019

A IGREJA DE PEDRA DOS DOMINICANOS

Estatua de São Domingos no jardim defronte à igreja. Foto de André Borges Lopes.
Não é todo mundo que gosta do seu estilo e, para muita gente, o prédio parece uma construção inacabada. Outros admiram-se com a sua beleza rústica. Impossível é ficar indiferente diante da Igreja de São Domingos, o centenário templo neogótico erguido pela congregação dos dominicanos em Uberaba na virada do século XIX para o XX. Mesmo nos dias de hoje, essa igreja construída com grossas paredes de pedra aparente impressiona por sua imponência e grandiosidade. Dá para imaginar a sensação que devia causar na Uberaba completamente sem prédios de 1904. No dia 2 de outubro daquele ano, o templo foi oficialmente inaugurado – ainda sem as duas torres e as abóbadas centrais sob a estrutura do telhado – em uma solenidade que agitou a vida pacata da cidade.

As novenas preparatórias tiveram início uma semana antes, em 23 de setembro. Estiveram presentes na missa de inauguração, além do chefe da diocese local – Dom Eduardo Duarte – dois bispos especialmente convidados: Dom Cláudio Ponce de Leão, do Rio Grande do Sul, e Dom José Lourenço, do Amazonas. Mais de 300 romeiros chegaram pelos trens da Cia. Mogiana. “As ruas da cidade, durante os dias de festa, regurgitavam de povo. O vasto templo, cuja beleza arquitetônica o faz um dos primeiros desse estado, enchia-se diariamente de gente”, contou o correspondente do jornal Correio Paulistano. Missas cantadas contaram com a participação de várias bandas da cidade, do “Schola cantorum” do Ginásio Diocesano e do Coro do Rosário. Na inauguração, cantou-se o Hino Nacional Brasileiro, a Marcha Pontifical e a Marselhesa. Em 1907, o grande templo sediou posse de Dom Eduardo, o primeiro bispo da nova diocese de Uberaba. No ano seguinte, celebrou-se ali a missa de comemoração do 7o centenário da revelação de São Domingos – em uma cerimônia na qual teriam sido concedidas mais de 3 mil comunhões.

Fundada por São Domingos em 1216, a “ordem dos pregadores” (mais conhecidos como“dominicanos”) havia se estabelecido em nossa cidade em 1881, proveniente de Tolouse, na França. Dois anos depois, chegou por aqui o frade italiano Raimundo Anfossi, responsável pela construção do primeiro prédio do Colégio Nossa Senhora das Dores (inaugurado em 1895). Os dominicanos haviam ocupado o pequeno convento erguido pelo franciscano Frei Paulino e assumido a antiga igrejinha de Santa Rita, que não conseguia acolher mais que duas centenas de fiéis nas missas de domingo – muito pouco para uma população que crescia rapidamente. Na época, a tradicional festa de Nossa Senhora do Rosário já reunia todos os anos milhares de devotos vindos de toda a região. Por isso, em janeiro de 1899, Frei Anfossi lançou a pedra fundamental de uma nova igreja, que deveria ser capaz de abrigar entre 1200 e 1500 pessoas. O terreno para a construção, no alto da antiga Ladeira do Mercado (atual Rua Lauro Borges), foi doado pelo Comendador José Bento do Vale e por sua esposa, Francisca Teodora.

  
Interior da igreja durante a construção, por volta de 1900.
Foto do arquivo dos Dominicanos de Tolouse.

Não está devidamente documentada a autoria do seu projeto, que tem a planta da nave em forma de cruz. Sabe-se que a construção ficou a cargo do empreiteiro italiano Emílio Betti Monsagratti, já estabelecido na cidade, que teria contado com a colaboração de um engenheiro francês de nome Florent, do qual não se tem maiores informações. Segundo a pesquisadora francesa Claire Pic, autora de um trabalho sobre a missão dominicana no Brasil (“Les dominicains de Toulouse au Brésil – 1881-1952:de la mission à l’apostolat intellectuel”), “sua aparência maciça, com tijolos ou pedras expostas (...) é similar à das construções no estilo gótico. Essas obras contrastam com as que eram usuais no Brasil, onde a arquitetura dos edifícios religiosos é geralmente colonial ou neocolonial, relacionadas às origens portuguesas do país. Elas testemunham a origem dos dominicanos, por sua semelhança com o estilo de edifícios religiosos construídos durante o período medieval no sudoeste da França”.


Igreja de São Domingos vista de frente, ainda sem as duas torres,
 e a réplica da Gruta de Lourdes. Esse cartão postal foi enviado em 1919, quando as torres já haviam sido concluídas.

       A igreja de São Domingos introduziu algumas novidades em Uberaba, como o teto de alvenaria em forma de abóboda, feito com tijolos (inaugurado em 1939). Usou-se na construção das paredes uma rocha sedimentar do tipo “Limonita”, abundante na região do cerrado, onde é conhecida como “pedra Tapiocanga”. Rica em óxidos de ferro, ela deu à igreja sua coloração marrom avermelhada. O trabalho de erguê-la contou com a colaboração de muitos operários e construtores locais, entre eles José Cotani. Jornais da época estimaram o custo da construção em mais de 600 contos de reis – uma pequena fortuna, suficiente para comprar três ou quatro fazendas grandes na região – que foi obtida com doações da comunidade. Uma réplica da Gruta de Lourdes foi construída, usando pedras e galhos de árvores, ao lado da edificação pelo cantareiro italiano Miguel Laterza. Dentro da melhor tradição dominicana – de seguir a fé sem virar as costas à ciência – quatro para-raios foram especialmente encomendados e instalados no telhado antes da inauguração.



Vista de Uberaba nos anos 1920, tomada do alto da torre da catedral. Ao fundo, no canto direito, aparece a igreja de São Domingos já com as torres construídas. Cartão Postal de Marcelino Guimarães.
Durante cerca dez anos, o templo funcionou sem as duas torres que, previstas no projeto original, só foram concluídas em 1914. Tinham a estrutura e a parte inferior feitas em madeira de lei, com os telhados pontiagudos revestidos com placas de cobre importado, o que dava a elas uma coloração particular. No início da década de 1960, o interior da nave passou por uma reforma a cargo do arquiteto Carlos Millan, que restaurou telhado e vitrais além de substituir parte do piso em ladrilho hidráulico por pedra branca de Pirenópolis. Os altares de madeira foram trocados, parte do mobiliário original e das imagens antigas foram vendidos, doados ou se perderam durante essa obra.

Vista aérea da igreja de São Domingos no final dos anos 1950, tendo como fundo o centro da cidade de Uberaba. Foto Postal Colombo.
Durante cerca dez anos, o templo funcionou sem as duas torres que, previstas no projeto original, só foram concluídas em 1914. Tinham a estrutura e a parte inferior feitas em madeira de lei, com os telhados pontiagudos revestidos com placas de cobre importado, o que dava a elas uma coloração particular. 
Praça defronte à igreja de São Domingos feita provavalmente em 1967, quando a igreja ainda tinha as torres originais.
Foto: jornal Correio da Manhã/Arquivo Nacional
Detalhe do telhado das torres, feito em folhas de cobre, já em processo de deterioração no final dos anos 1960. Foto: jornal Correio da Manhã/Arquivo Nacional

No final de 1980, as duas torres estavam em estado precário de conservação e algumas placas de cobre começavam a se desprender, colocando em risco os visitantes. A prefeitura municipal contratou a Construtora Urbano Salomão para fazer a demolição das antigas estruturas e a construção de duas réplicas. Novas torres foram erguidas com estrutura de metal e concreto, com revestimento do telhado feito em chapas de ferro pintado com tinta epoxi, serviço executado pela empresa uberabense Promelco. O obra, concluída em agosto de 1981, deixou as torres com uma aparência mais rústica que a original. Em 2003, a igreja de São Domingos foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).

(André Borges Lopes – uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna “Binóculo
Reverso” do Jornal de Uberaba em 22/12/2019)