Mostrando postagens com marcador Antonio Prata. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Antonio Prata. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O horror acima de todos

Eis que, por razões que fogem à razão, num dia agourento de 2018 o pior aluno da escola foi alçado ao cargo de diretor. Zé Peidola, que estava há 28 anos sem conseguir passar da quinta série, tinha este apelido por conta de sua ocupação favorita: liberar gases durante as aulas. Os amigos do fundão riam muito e diziam que o Zé Peidola era “mó zoeiro!”.

Após ser empossado, a primeira atitude do Zé Peidola foi demitir todos os professores e colocar em seus lugares os amigos do fundão. No lugar da Fátima, professora de física formada pela USP, entrou o Mosca, que era bom de Lego. Gilberto, de geografia, formado pela Unicamp, foi trocado pelo Horroroso, que já tinha viajado pra Disney e pra Bariloche. Chris, a professora de português, com dois livros de poesia publicados, foi trocada pelo Língua Presa porque Zé Peidola achou muito engraçado colocar alguém de língua presa para ensinar uma língua. No lugar do professor de artes não entrou ninguém, porque segundo Zé Peidola arte é coisa de viado. Mó zoeiro, o Zé Peidola!

O único adulto colocado como professor foi o Teles, pra ensinar matemática. Teles tinha feito faculdade nos Estados Unidos 50 anos antes e ainda era membro de uma antiga seita que ninguém mais seguia –nem nos Estados Unidos– segundo a qual a escola não tinha que dar nenhuma orientação, era pra deixar os alunos fazerem o que quisessem e eles se entenderiam.

Depois, Zé Peidola trocou a fruta do lanche por Cheetos sabor churrasco. A média para passar de ano foi de seis e meio para dois. Zé Peidola cortou todas as árvores do pátio e colocou no lugar televisões passando Silvio Santos. Na biblioteca, Zé Peidola instalou TVs passando Tom & Jerry e botou os livros para serem usados como papel higiênico. O laboratório ele e os amigos destruíram a marretadas, salvando só o clorofórmio pra fazer lança-perfume. Mó zoeira!

A escola, sob os desmandos de Zé Peidola, foi se desmilinguindo. Ninguém aprendia nada com aqueles professores. Os bons alunos passaram a sofrer bullying. Por medo, as alunas só iam ao banheiro em bando. Um dia o Zé Peidola viu uma aluna pedindo pras amigas irem ao banheiro com ela e disse que ela não precisava ter medo porque era feia e não merecia ser estuprada. Mó zoeira!

Então, no começo do segundo ano de Zé Peidola na direção, surgiu na escola uma epidemia. O médico consultor da escola sugeriu algumas medidas profiláticas. Zé Peidola disse que quem mandava ali era ele, demitiu o médico e botou um amigo no lugar.

Os alunos começaram a morrer. Zé Peidola disse, com visível raiva das vítimas, que só morria aluno com problema de saúde. (Ele pensou, satisfeito, mas não disse, que ia morrer muito preto e pobre, também). Morreu um. Morreram dez. Cem. Mil. Dez mil. Quinze mil. Zé Peidola pediu pro amigo médico receitar aos doentes Cheetos sabor churrasco –tinha visto no Twitter que curava a doença. O amigo recusou-se. Zé Peidola o demitiu também.

Chegou uma hora em que morriam mil por dia. Morriam sem ar. Afogados, com os pulmões inundados. Roxos. Sós. Eram enterrados sem velórios, em valas comuns. E os adultos –você se pergunta–, não faziam nada?! Nada. Aqui e ali, publicavam umas notas de repúdio e enquanto viam seus pais morrerem, seus irmãos morrerem, seus filhos morrerem, as paredes da escola ruírem e o teto desabar, diziam que não era o caso de tirar Zé Peidola da direção. Vinte mil. Trinta mil. Cinquenta mil. Cem mil? Mó zoeira!

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”
Uma primeira versão desse texto foi publicada  no Jornal Folha de São Paulo em 16/05/2020.

=======================


Fanpage: https://www.facebook.com/UberabaemFotos/

Instagram:  instagram.com/uberaba_em_fotos

Cidade de Uberaba

terça-feira, 28 de abril de 2020

Sua majestade, o vidro

Na última quinta, pela manhã, minha amiga sai de casa e da calçada oposta um homem abaixa as calças, mostrando-lhe o pinto. Ela corre até o guarda da esquina. “Moço! Um homem acabou de abaixar as calças pra mim, ali, bem na frente da minha casa!”.

O guarda, sentado em sua cadeira de plástico, a olha com enfado: “Não posso fazer nada, senhora, a rua é pública”. Ela então acrescenta, à guisa de experimento sociológico: “Ele quebrou o vidro do meu carro”. O guarda se levanta num salto, pega o cassetete e fala, com sangue nos olhos: “Onde?! Cadê?! Pra que lado ele foi?!”.

O acontecimento me parece uma dessas histórias talmúdicas ou contos chineses, cheios de significados. Agredir uma mulher, na visão do guarda, é um direito do cidadão. Agora, quando quebra o vidro de um carro é um absurdo que deve ser combatido imediatamente. #mexeucompatrimôniomexeucomtodos!

O “guarda da esquina” é um personagem antigo da política brasileira. Na reunião em que foi proposto o AI-5, o vice-presidente Pedro Aleixo teria dito a Costa e Silva: “O problema deste ato não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, é o guarda da esquina”.

Queria dizer que se do alto vem a mensagem de que dane-se a lei, lá embaixo a turma pode, veja só, entender exatamente o que foi dito e sair barbarizando. 

A frase geralmente é citada como uma ponderação razoável, mas me soa reveladora do autoritarismo nacional. Uma coisa é o alto escalão mandar às favas a civilidade, fechar o Congresso, avacalhar com o Estado de Direito. Isso aí tá ok, ok? Agora, o pobre, não.

O pobre tem que obedecer. O fazendeiro que queima a Amazônia é empreendedor. O MTST que invade um prédio abandonado é terrorista.

A atitude do guarda da esquina na história da minha amiga ecoa a de boa parte da elite brasileira nas últimas eleições.

Durante a campanha, Bolsonaro abaixou as calças diante da lei, dos direitos humanos, da Amazônia, da educação, da cultura, das minorias, dos oponentes, mas garantiu que com Paulo Guedes ninguém iria quebrar o vidro do nosso carro. Fiesp, CNI, igrejas evangélicas, Hebraica do RJ, mercado financeiro, agronegócio, parte da imprensa, todos riram, aplaudiram e disseram: vamos nessa!

Bolsonaro segue abaixando as calças, todos os dias, para a democracia, o Estado de Direito, os jornalistas (e principalmente as jornalistas, covarde que é), mostrando a arminha para qualquer noção de civilidade e dignidade, esgarçando o tecido já puído das nossas instituições. 

E o primeiro andar continua de olho, exclusivamente, no vidro do carro. Ou, no máximo, suspeitando que Paulo Guedes subiu no telhado, manifestam-se alguns, aqui e ali, supostamente assustados, como se despertassem do sono da mosca tsé-tsé e descobrissem que Bolsonaro segue falando e fazendo o que sempre falou e fez durante a vida toda.

Sabe o que é pior? Se houver manifestações de rua e quebrarem um único vidro de carro, apedrejarem uma agência bancária ou um McDonald’s, os mesmos que o apoiaram nas eleições vão apoiar medidas de exceção que, veja bem, não são um golpe, dirão, mas ações extraordinárias diante de uma situação extraordinária.

A miséria, a falta de saneamento básico, o abismo entre brancos e negros, entre homens e mulheres, a violência policial nas periferias, as milhões de crianças cuja educação está entregue às mãos de um ministro cujo analfabetismo é um dos menores defeitos: nada disso é motivo de escândalo. Mas vai meia dúzia de moleques mascarados quebrar uma vitrine pra ver o que acontece. 

Eis o grande patrimônio nacional, nosso maior orgulho, nossa instituição mais sagrada: sua majestade, o vidro.

Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

_Folha de S. Paulo_ 23.2.2020

Cidade de Uberaba