Nos fins da década de 1960 e nos primeiros anos de 1970, Uberaba ainda guardava um silêncio respeitoso diante da morte. E, quando esse silêncio se rompia, era por Eu era criança e lembro bem. Era um som constante, descendo a Rua Arthur Machado, a Avenida Leopoldino de Oliveira ou a Avenida Fidélis Reis. Fúnebre mesmo. Dava medo, do motorista, do carro e do caixão.
Assim soava a buzina dos carros fúnebres da Funerária Irmãos Pagliaro, que ficava na Avenida Fidélis Reis. O apelido “be-re-rê” nasceu dentro da própria família Pagliaro, numa brincadeira inspirada justamente nesse som metálico, rouco, que ecoava pelas ruas sempre que o carro virava uma esquina ou seguia no cortejo rumo ao cemitério.
O povo parava, tirava o chapéu, fazia o sinal da cruz. As crianças, entre curiosas e assustadas, cochichavam:
— Lá vai o “be-re-rê”..
Esses carros eram verdadeiras obras de arte fúnebre. Tinham anjinhos com cornetas nas laterais, molduras douradas e cortinas de renda nos vidros. O carro branco, o mais comentado, era usado para crianças e moças virgens, o famoso “carro dos anjinhos”. O preto e o roxo eram destinados aos adultos, e às vezes havia um rosado, reservado para pessoas importantes da sociedade.
Os “be-re-rês” ficavam guardados na garagem da funerária, nos fundos do prédio, cobertos com lonas brancas, como se descansassem à espera da próxima despedida. Quando algum funcionário levantava a lona ou ligava o motor, o som da buzina parecia ecoar pela memória da cidade.
E como tudo em Uberaba ganhava poesia ou humor, até a morte virou verso de rua. As crianças cantavam, entre risos e arrepios:
“Quando você morrer, seu corpo vai num be-re-rê, sua língua vai num FeNeMê...”
Era a praga dos tempos antigos, dita em tom de brincadeira, mas cheia de respeito disfarçado.
Com o passar dos anos, os “be-re-rês” foram tirados de circulação. Vieram os carros modernos, silenciosos, sem anjinhos e sem buzina. Mas quem viveu aquele tempo ainda escuta, lá no fundo da lembrança, o eco rouco e solene que marcava o último adeus de uma Uberaba que também já se foi: “be-be-be-rê-rê-rê-rê...” (Antônio Carlos Prata)
