segunda-feira, 2 de setembro de 2024

NOVO LIVRO SOBRE A FAMÍLIA PRATA E UBERABA

José Raimundo Gomes da Cruz


Procurador de Justiça de São Paulo aposentado

Em memória do PADRE THOMAS DE AQUINO PRATA,

FALECIDO EM 4/4/19, EM UBERABA, MG
Acabava de sair o novo livro do Padre Thomaz de Aquino Prata. Tratava-se de primorosa edição gráfica do seu irmão José Expedicto Prata. Título da obra: Memórias da memória. Subtítulo: “De Joaquim a José: uma visita à casa paterna” (São Paulo : José Expedicto Prata, 2008). O livro é dedicado à memória de D. Laura, bisavó do autor, dos pais e dos seus irmãos falecidos; enfim, aos três ainda vivos.

Coincidência curiosa consiste na presença de D. João VI, cujos duzentos anos da vinda para o Brasil se comemoram, nos primórdios da “saga de Joaquim a José”. Foi por volta de 1808 que, como outros comerciantes e agricultores, “Joaquim José e seus irmãos decidiram partir” (p. 27). Chegando ao Rio de Janeiro, partiram para a região de São Bento
do Tamanduá, hoje Itapecerica, província de Minas Gerais (p. 30). Época de muitos portadores de hidropisia e lepra, com a surpreendente cura “com picada de cascavel” (p.33). Enfim, o “Sertão da Farinha Podre”, como se chamava a região do atual Triângulo Mineiro (p. 39). O Arraial da Farinha Podre também se chamava Santo Antônio de Uberaba (p. 48). A vez do “genocídio brutal e impiedoso” dos indígenas locais (p. 49). A aquisição
das terras já dependia de “muita falcatrua, apadrinhamento político, negociatas” (pp. 49/50). A vocação agro-pecuária de Minas (pp. 50/51).

Interrompo a resenha à p. 53, para reflexão que venho fazendo sobre o tão propalado “fio de barba”. Se havia escravidão, “genocídio brutal e impiedoso”, “falcatrua, apadrinhamento político, negociatas”, fio de barba não passa de lenda. À p. 62 existe até referência a certo “roubo legal”. Aí mesmo se esboçam os futuros “esquadrões da morte”, contra os “desocupados”. E o próprio catolicismo só valia dentro da igreja (p. 63).

O nome “Prata” tem sua explicação à p. 64. A descrição dos pratos e sobremesas inclui “o indispensável arroz doce” (p. 66). Não falta o riso: “Contou-me tio Quinzinho que alguém, certa vez, perguntou ao velho Joaquim José por que tinha se casado com uma mulher tão pequeninha. Carrancudo e mal-humorado, respondeu seco: ‘Dos males, o menor’.” (pp. 67/68).

Frase lembrada: “O Brasil é o café, e o café é o negro” (p. 73). O dia seguinte da Lei Áurea se resume: “Não eram mais escravos, mas viviam como se ainda fossem”. Não se nega o óbvio: a escravidão era apoiada pelo Estado e pela Igreja. A suprema e infame contradição: antes de embarcar para o Brasil, os escravos “eram marcados no peito com uma cruz por um ferro em brasa, significando que já eram batizados” (p. 74). Os “padreadores” tinham privilégios: eram os reprodutores de escravos. É que ainda não havia a inseminação artificial... (p. 77) Sobre a “padreação” e “criatórios” de escravos, convém ver a p. 93.

Já existia na família Prata quem se levantasse às quatro horas da madrugada (p. 82).
Era, mesmo, a regra, pois as pessoas dormiam ao escurecer. A propósito, antecipo observação importante do editor do livro, meu concunhado. Consta, à p. 148, que seu pai, homem religioso, fazia “Noite de Guarda, na Igreja da Adoração Perpétua, no dia 16 de cada mês.” Havia “ficha de comparecimento” e o José Expedicto, ainda criança, saía, por determinação da D. Quita, sua mãe, entregando as fichas a cada encarregado da “adoração”, com o horário. Alberto Prata, pai do autor e do editor, fazia a “adoração” sempre às duas horas da madrugada.

Quando a Maria Lúcia e eu participamos do Encontro de Casais com Cristo, ficamos sabendo que vários casais se revezavam fazendo adoração na Capela do Colégio Assunção, aqui em São Paulo. Perguntamos a dois casais dirigentes se a adoração era também durante toda a noite. Acharam, com razão, ingênua a nossa pergunta e responderam:
– Nós ainda não somos tão santos assim. – Quer dizer, quando se encerravam as atividades de cada dia, cessava a adoração dos casais.

Se dependesse da adoração, contínua e ininterrupta, da Uberaba dos anos trinta e
quarenta do século passado, a santidade seria ampla e irrestrita.

A justiça da época do suposto fio de barba era bem estranha. Certo escravo deixou de ser condenado à forca, por homicídio, com o compromisso de tornar-se carrasco (p. 84).

E houve vista grossa para a execução de um escravo idoso, quando a ré era sua filha de
apenas 25 anos, portanto, mais lucrativa (p. 85). Isso faz lembrar o caso daquele condenado por participação na Confederação do Equador, que conseguiu fugir e asilar-se numa das Guianas, de onde mandou procuração para certo conhecido seu sofrer a execução na forca em seu lugar. De outras eras e lugares é também a historinha do lugarejo onde havia só um sapateiro, um alfaiate, um ferreiro etc. Cometeu-se um bárbaro homicídio e o réu era o único alfaiate. Alguém se lembrou, então, de propor, como na ocasião eles tinham dois sapateiros, que fosse condenado um destes, para evitar a falta dos serviços do verdadeiro
culpado.

A Guerra do Paraguai também passou por Uberaba (pp. 90 e ss.). Merece especial atenção a carta do Visconde de Taunay, às pp. 275/277.
Chegam a Uberaba os partidos políticos: o Conservador (“Cascudo”) e o Liberal (“Chimango”). O caso do capanga que mata a vítima errada faz lembrar seu colega de conto mais recente, que confessou isso ao mandante do crime, mas disse que não ia cobrar nada pela vítima que ele matara por engano; só receberia pela morte encomendada. A versão de Anjo Azul tem sua vez (p. 103). O primeiro automóvel chega (p. 107). E o trágico também (p. 116). A surra, por não cumprimentar o avô paterno (p. 120). A propósito do mamão, que
o avô não comia, devo lembrar que homem algum comia mamão em certa região de Minas Gerais, no meu tempo de Promotor de Justiça: mamão era frio. Segue-se explicação para a chamada “religião popular” (p. 123).

À p. 151, o autor do livro ordena que o leitor pare de ler. Preferi desobedecer e
recomendo que todos o façam.
Essa recomendação inclui o texto do editor, às pp. 159/162. Teria a saga de Joaquim José acabado em 1937? Não, a história prossegue.

Os versos de Alberto Prata são precedidos de apresentação (p. 167), que transcreve a apreciação crítica da professora Terezinha Hueb de Menezes (pp. 168/170). A poesia, como a casa do Pai, tem muitas moradas. Em recente matéria inédita da minha autoria, cito alguém que observa que, entre os poemas mais lembrados, nem sempre se encontram aqueles de prestígio acadêmico. Prefiro que a análise da autoridade prevaleça, para não
passar, como o sapateiro da velha Grécia, diante da pintura de Apeles, além da sandália.

A rigor, isso valeria também para todo o livro. Mas aí me sinto mais à vontade.
Mesmo diante do texto do Hugo Prata, sobre as fazendas mineiras no início do século XX
(pp. 253 e ss), fico bastante em casa. Destaco a lembrança do berreiro do porco levado ao
sangramento (p. 258). Desde menino, em Espinosa, norte de Minas Gerais, não consigo explicação para a “adivinhação” do destino trágico pelo animal.

O livro se mostra rico em ilustrações e documentos, como afirmei no início sobre o requinte de sua edição.
Intencionalmente, deixei para o final a apresentação da Maria Regina Mendes Prata,
mulher do editor, sob o título “Recordar, narrar, esquecer”. Porque o final desse texto constitui o fecho mais conveniente para suprir as grandes omissões da minha tentativa de comentário:
“Este livro é bem-vindo, pois vai tecendo uma rede de afetos que se rompeu em vários lugares no passado e cujas conseqüências podem ser sentidas até hoje. Ao se contar a saga desta família, o que fica é a coragem, o otimismo, a esperança e a confiança na vida, de tal forma poder-se afirmar que, hoje, não há haveres a haver nem débitos a serem pagos.
A conta da família está fechada.”