quarta-feira, 28 de junho de 2017

MARIA FUMAÇA – TRILHOS, GENTE E HISTÓRIAS


Maria Fumaça - Foto de 1910



Para alguns, o ruidoso ritmo do trem de ferro é música que preenche o dia ou acalanta o sono noturno. Poesia à parte, no século XIX, constituir uma malha ferroviária era um acontecimento atopetado de disputas e conflitos pelo mais eficiente e mais lucrativo traçado.

Filha de cafezais e burburinhos acalorados, a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro (1888), nasceu, nos arredores de Campinas (SP), em ambiente nada pacato. Os homens do café se altercavam para garantir que o caminho de ferro alcançasse suas propriedades: isso diminuiria custos com transportes e valorizaria terrenos. Instalados os carris, a temperatura das negociações de compra e venda de terras se elevou e novas áreas dispostas a fazerem vingar as sementes da aromática bebida seduziram migrantes e imigrantes em busca de trabalho.

Logo, logo a Companhia ganhou singela alcunha de estrada “cata-café” e estendeu sua longilínea e sinuosa figura, esmerando-se em garantir seu raio de controle e em canalizar a produção cafeeira para suas estações, espalhadas em vários pequenos ramais. A partir de Campinas serpenteava até Mogi-Mirim (1875), alcançava Casa Branca (1878), Ribeirão Preto (1883), Batatais (1886) e Franca (1887).
Nos anos seguintes, dois mil quilômetros de linhas serviam São Paulo e Minas Gerais, cortando o Triângulo Mineiro. Nesse caminho de aroeira e aço, curiosamente, o sexagenário município de Sacramento, apesar de esbanjar talento no cultivo e na exportação do café, barrava a chegada dos trilhos com sua geografia. Na Serra do Cipó triangulina, a estrada de ferro se desviou para a esquerda, estabelecendo distância de 14 km entre ela e a cidade que, considerada grande produtora agrícola, foi remediada com uma estrada para carros de boi. Eram três dias orientando as parelhas para vencer os 14 km, contra um que o trem levava para chegar a São Paulo e três horas para aportar em Uberaba.
Uberaba, apesar de desprovida das brancas flores dos cafezais, não só foi agraciada com a chegada da linha, como ocupou, por sete anos, o glamouroso posto de ponta dos trilhos. Muita energia foi gasta para que a Princesinha do Sertão desfrutasse desse privilégio, mas ardorosas relações comerciais com centros mais poderosos e uma posição privilegiada no mapa justificaram a extensão da linha e o mergulho em magnífica fase de prosperidade recompensou o esforço. No dia 10 de março de 1889, a máquina Cel Quirino, avançando tímida pela ferrovia, apitou no meio da tarde uberabense e, carregada de operários, foi recebida sob aplausos e hinos.

Nas viagens seguintes, de estação em estação e na algazarra da novidade, o fuliginoso caminho incluía anciãos dos vários vilarejos que saíam de suas casas para ver o trem passar, com surpresa nos olhos, ainda que fosse a mesma máquina, no horário de sempre, e a conversa entre o apito do encarregado da estação e a buzina da locomotiva, marcando o momento de todos ocuparem os bancos de primeira ou de segunda classe, porém sabendo que, conforme o coronel a embarcar, a geringonça não partiria sem a sua presença. Em diferentes épocas e com suas singulares histórias e traquinagens, os passageiros caminhavam pelos vagões, avançavam as caras pelas janelas para ver o rastro branco da fumaça, as cidades se aproximando, mulheres negociando seus quitutes, nas paradas, ou o lendário gavião que, em estreita amizade com garçons do vagão-restaurante, em horário e lugar instintivamente conhecidos ganhava carne fresca.

Nos seus primeiros 50 anos, a Companhia Mogyana de Estradas de Ferro e Navegação expandiu suas linhas, mas, na segunda metade de sua vida, internou-se em crise finaceira, foi incorporada à Ferrovia Paulista SA (FEPASA), na década de 1970, e, vinte anos mais tarde, deixou como única opção aos passageiros, o adeus às pitorescas viagens. A linha, mesmo criada para servir a interesses cefeeiros, abriu caminhos vitais ao futuro e emprenhou nossa cidade de gente astuta e corajosa que plantou, por aqui, mudas de frondosas árvores genealógicas.

Inúmeros caminhos cortaram rios, campos e vilas, para que a ferrovia carregasse mercadorias, gente e histórias, mas o tempo, impiedoso e irreversível, subtraiu das pequenas estações a emoção de encontros e despedidas, deixando-as para trás na geografia e no tempo. Na solidão de cada uma e nas lembranças de quem ficou ao redor, a certeza de novas narrativas, quem sabe registradas na próxima crônica…

Texto: Iara Fernandes