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domingo, 16 de fevereiro de 2020

AS MUITAS MORTES DO CAPITÃO SILIMBANI

Corria o ano de 1908 e as novidades sobre os voos de Santos Dumont em Paris com seus aparelhos “mais pesados que o ar” chegavam a Uberaba por jornais e revistas, atiçando a imaginação das pessoas. Os primeiros aviões eram um sonho distante, mas a possibilidade de ver um homem voando estava cada vez mais perto: circulava a notícia de que em breve chegaria na “Princesinha do Sertão” o arrojado aeronauta Jose Silimbani – capitão do Real Corpo de Aeróstatos da Itália – que, desde o ano anterior, assombrava os brasileiros com suas exibições aéreas com o balão de ar quente “Colosso”.

Desenho e dados técnicos de um balão de ar quente do tipo Montgolfier, do século XVII.

Não existem fotos do balão de ar "Colosso "do Capitão Silimbani. Mas não devia ser muito
diferente desse que aparece sendo inflado em um Circo Aéreo no estado do Nebraska, EUA, em 1910.


Outra imagem de uma apresentação de balão de ar quente nos EUA no início do século XX.

O balão de Giuseppe Silimbani não tinha cesto de passageiros.
 Em vez disso, havia um par de trapézios pendurados, nos quais ele fazia acrobacias nas alturas. Um tipo de show comum nessa época.

Giuseppe Silimbani e sua primeira esposa Antonietta Cimolini. O casal de italianos compartilhava o gosto pela música e por esportes radicais. Em 1902, mudaram-se para Buenos Aires, na Argentina.

Na Argentina, Giuseppe tornou-se o Capitão Jose Silimbani. O casal apresentava-se em acrobacias aéreas, com o patrocínio de uma fábrica de cigarros. Em março de 1904, um acidente tirou a vida de Antonietta, mas os jornais brasileiros "mataram" o capitão.


Em 1907, Jose Silimbani veio ao Brasil fazer uma temporada de exibições. Após apresentar-se na capital paulista, tomou o trem da Mogiana e evenredou pelo interior até chegar em Uberaba.

A primeira versão do assassinato, divulgada pela imprensa de Uberaba, foi reproduzida em diversos jornais no Brasil e no exterior. A investigação policial mostrou que a história real era bem diferente.


Balões de ar quente não eram uma novidade. Reza a lenda que o Padre Bartolomeu de Gusmão, um brasileiro da cidade de Santos, teria colocado alguns para voar Lisboa no início do século XVIII. Algumas décadas mais tarde, em 1783, os irmãos franceses Joseph e Étienne Montgolfier criaram um modelo prático e popularizaram seu uso. Por volta de 1900, eram comuns as exibições de voos desses aeróstatos por artistas e aventureiros em todo o mundo.

Depois de apresentar-se com sucesso nas cidades de Campinas, Ribeirão Preto e Franca, o capitão finalmente chegou a Uberaba de trem. Desembarcou seus equipamentos, hospedou-se no elegante Hotel do Comércio da Rua Vigário Silva e anunciou o local escolhido para sua apresentação: o Largo das Mercês, atual Praça Dom Eduardo. Ingressos para o evento foram vendidos a 8 mil reis para adultos, 1 mil réis para crianças. Às duas da tarde do dia 3 de maio, um domingo, Silimbani inflou seu balão e ganhou os céus. Dezenas de metros acima do solo, pendurou-se em um trapézio e exibiu-se em um show de arriscadas acrobacias. De volta ao solo, foi recebido em triunfo pela multidão, embora alguns tenham reclamado da pequena duração do show.

O balonista havia sido contratado pela companhia teatral de Manuel Balesteros para fazer duas apresentações na cidade. A segunda ascensão seria no domingo seguinte, dia 10. Mas no sábado à noite aconteceu o impensável: o destemido capitão, gravemente ferido por um tiro de garrucha que lhe atingira o baço, agonizava em seu quarto de hotel. Nos dias seguintes, jornais de todo o Brasil anunciaram a morte do aeronauta em Uberaba, assassinado após uma briga.

Silimbani tinha 34 anos de idade, e não era a primeira vez em que perdia a vida, ao menos na imprensa brasileira. Em março de 1904, vários jornais de São Paulo e do Rio anunciaram sua morte ao despencar nas águas do Rio da Prata durante uma apresentação em Buenos Aires. O acidente causou grande comoção porque o corpo desapareceu e demorou a ser encontrado, mas não fora ele quem morrera. A vítima era sua jovem esposa, a também italiana Antonietta, parceira nas exibições aéreas. O casal tinha um filha, na época com cinco anos de idade.

Giuseppe Silimbani nasceu na cidade de Forli, na Emília Romana e começou a vida como padeiro. Tenor aficionado e esportista em diversas modalidades, logo interessou-se pelo balonismo. Em 1898, casou-se com Antonia Cimolini, natural da Ravena, com quem compartilhava o gosto pela música e pelo esporte. A dupla começou a apresentar-se pela Itália mas, em 1902, decidiu vir para a Argentina – onde Giuseppe tornou-se “Jose” e inventou o fantasioso título de “capitão”. No ano seguinte, os dois já eram razoavelmente famosos: com o patrocínio de um fabricante de cigarros, exibiam-se em diversas cidades. São considerados precursores da aeronáutica no país vizinho.

Com a morte da esposa e parceira, Silimbani seguiu apresentando-se sozinho. No final de 1907, já casado novamente, deixou a família em Buenos Aires e arriscou-se em uma temporada de shows aéreos pelo Brasil. Fez diversas exibições em Santos e São Paulo, onde apresentava-se no Parque Antárctica e logo tornou-se um ídolo da comunidade italiana, que o tratava como "o homem mais corajoso do mundo". No final de janeiro de 1908, deu início a uma sequência de shows pelo interior, seguindo os trilhos da Companhia Mogiana até chegar em Uberaba.

A última morte do Capitão Silimbani aconteceu na imprensa. Seus assassinos espalharam a notícia de que, no início da tarde do sábado, o italiano havia ofendido e importunado diversas mulheres da cidade. Por fim, invadira a casa e tentara violentar a esposa do seleiro Joaquim da Cunha que, vindo em seu socorro, lutou com o agressor e acabou lhe dando o tiro fatal. Essa versão foi reproduzida em diversos jornais brasileiros.

A investigação mostrou que os fatos não correram bem assim. Ouvidas pelo delegado, nenhuma das outras mulheres confirmou as tentativas de assédio. O inquérito apurou que Joaquim e Marina, chegados há poucos meses da cidade mineira de Guaranésia, moravam nos fundos da ferraria do Sr. Antonio Felix, no Largo das Mercês, onde o balonista montava seus equipamentos. Na ausência do marido, que saíra para fazer um serviço nas imediações, o italiano teria dirigido alguns galanteios e propostas a Marina – que não tiveram boa acolhida. Alertado do fato por vizinhos, o seleiro voltou ao local armado com uma garrucha.

Silimbani anda tentou refugiar-se na ferraria, onde foi espancado pelo proprietário e por um outro funcionário, que era primo de Marina. Já bastante machucado, acabou expulso para a rua, onde Joaquim disparou o tiro, evadindo-se em seguida. Apesar de socorrido no prédio do Ginásio Diocesano, os médicos lhe deram poucas esperanças. Levado ao hotel, morreu no início da noite e foi enterrado em Uberaba no dia seguinte. O delegado pediu o indiciamento dos três pelo assassinato, mas não encontramos notícias do resultado do processo. Apesar de protestos isolados da comunidade italiana, muitos jornais não se preocuparam em desmentir a primeira versão.

(André Borges Lopes – Uma primeira versão desse artigo foi publicada na coluna Binóculo Reverso em 02/02/2020. Um agradecimento especial ao João Araújo, do Arquivo Público de Uberaba, que ajudou a recuperar essa história)

sábado, 1 de fevereiro de 2020

UMA DAMA NA BARBEARIA

Já falamos aqui sobre os “anos dourados” da pecuária do zebu durante o início da década de 1940. Com os grandes países do mundo envolvidos numa guerra interminável, a demanda e o preço da carne bovina no mercado internacional foi às alturas.

Capa do jornal "Lavoura e Comércio" do dia 19 de abril de 1944

O governo brasileiro, por meio do Banco do Brasil, oferecia crédito fácil e barato a qualquer interessado em investir na criação de gado. O resultado foi uma “bolha especulativa” com o boi indiano: milhares de pessoas, muitas sem nenhuma familiaridade com o negócio, tomavam empréstimos ou aplicavam suas economias na criação de zebu, em busca de fortuna rápida. Como era de se esperar, o preço dos reprodutores disparou.

Um detalhe da foto de capa, tirada pelo fotógrafo Prieto.

De um momento para o outro, os pecuaristas do Triângulo Mineiro tornaram-se celebridades nacionais. A imprensa contava histórias e lendas sobre os novos milionários e seus touros transformados em verdadeiras minas de ouro. Dizia-se que, em Uberaba, havia estábulos com ar refrigerado – na época, um luxo que pouquíssimas casas dispunham – e que algumas reses tomavam banho com champanhe. Num tempo em que andar de avião era um sonho, divulgavam-se fotos de touros sendo transportados em aeronaves para fazer coberturas. Alimentando a fama, grupos de “zebuzeiros” fechavam bares e cassinos no Rio de Janeiro, em festas onde comentava-se que charutos finos eram acesos com notas de dólar americano.

Avenida Leopoldino de Oliveira, no final dos anos 1940. No canto esquerdo, o prédio da Associação Comercial, que tinha no térreo o Restaurante Ribamar.

Certamente havia excessos de novos-ricos deslumbrados com o dinheiro fácil, mas boa parte dessas lendas era simples invenção, ou exagero em cima de fatos reais. Houve, de fato, alguns casos em que reprodutores vendidos para regiões distantes do Brasil foram levados de avião – até porque eram poucas as opções de transporte. Mas a especulação com o preço dos animais gerou situações inusitadas. Algumas delas podem ser resgatadas nos jornais da época, como o velho “Lavoura e Comércio” de Uberaba.

Tantos eram os interessados na Exposição de Gado Zebu em 1944, que a SRTM solicitava à população que recebesse os visitantes em suas casas.

Em abril de 1944, a euforia estava no auge e nossa cidade se preparava para a abertura de mais uma Exposição. Eram tantos os interessados em conhecer “a Meca do Zebu” que os hotéis e pensões não davam conta. A Sociedade Rural do Triângulo Mineiro, antecessora da ABCZ, publicou anúncios nos jornais pedindo às famílias uberabenses que se dispusessem a alugar quartos em suas casas para alojar os visitantes. No dia 19, o “Lavoura” estampou na capa uma grande notícia com direito a foto, onde se via uma jovem bezerra sendo atendida em uma barbearia no centro da cidade. E contava em detalhes a história.

O Salão Rex continua em funcionamento, mas desde os anos 1970 está na Galeria do Edifício Rio Negro. O cabeleireiro Vasco, veterano do estabelecimento, confirmou algumas das informações dessa história. Foto: divulgação Galeria Rio Negro

O criador José Campos, filho de uma família de fazendeiros da vizinha cidade de Veríssimo, contou que estava almoçando no restaurante Ribamar – na época um dos melhores da cidade, no lugar onde mais tarde funcionou o Bar Tip-Top – quando viu passar pela calçada da Avenida Leopoldino de Oliveira um homem conduzindo uma bezerra zebu. Largou os talheres, correu atrás do moço e disse que queria comprar o animal. O dono, José de Paula, relutou em vender – alegando que a havia ganho de presente, que a bezerra chamava-se “Boneca” e era criada em casa, como bicho de estimação. Mas não resistiu a um cheque de 10 mil cruzeiros oferecido pelo pecuarista.

Capa do jornal "Lavoura e Comércio" do dia 19 de abril de 1944

Criador experiente, José Campos achou que Boneca – uma Indubrasil bem puxada para o Gir – estava maltratada, que a aparência descuidada e os pelos longos escondiam suas boas qualidades. Sem muitas alternativas nas imediações, Campos levou a bezerra ao Salão Rex – tradicional barbearia que ficava na própria Av. Leopoldino, próximo à esquina da Rua Artur Machado, onde hoje há uma loja de celulares – e convenceu o proprietário Artur Riccioppo a “dar um trato” na menina. A cena foi flagrada pelo fotografo Prieto.

De banho tomado e com a toilette feita, Boneca despertou a cobiça de quem passava pelo local. Teve início na calçada um leilão improvisado, onde o novo proprietário teria “enjeitado” uma oferta de 40 mil cruzeiros pela nova estrela do seu plantel. “Boneca tem qualidades excepcionais” – dizia – “bem tratada, dentro de pouco tempo estará figurando entre as bezerras mais cotadas de região, e seu preço superará a casa dos 100 mil cruzeiros”. Para se ter uma ideia, com esse valor comprava-se na época um pequeno apartamento com vista para o mar no Rio de Janeiro.

Já no ano seguinte, com o fim da guerra e o corte nos financiamentos, a “farra do boi” terminou de forma trágica. O preço do gado despencou, inúmeros fazendeiros e investidores perderam tudo o que tinham e a classe dos pecuaristas passou uma década pendurada em dívidas e penhores – até conseguir um generoso perdão do governo em 1954.

(André Borges Lopes_Uma primeira versão desse texto foi publicada da na coluna "Binóculo Reverso”do Jornal de Uberaba, em 19/01/2020

domingo, 19 de janeiro de 2020

MÉDICOS NA CADEIA



Nos últimos dias de novembro de 2019, reuniu-se em Uberaba um pequeno grupo de médicas e médicos veteranos. Alguns são da região, outros vieram de longe especialmente para o evento: Arlindo Pardini (de Belo Horizonte), Benito Ruy Meneghello, Hiroji Okano e Nilza Martinelli (de Uberaba), Honório Gomes de Mello (de Goiânia), José Ernesto Teixeira (de Brumadinho) e Zoé Sellmer (de São Paulo). Tinham em comum – além dos cabelos brancos, da longa experiência e da consagração na profissão que escolheram – a emoção de um reencontro: comemoravam os 60 anos de sua formatura na então Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. No final do distante ano de 1959, a FMTM concretizou a ousadia de um antigo sonho ao entregar os diplomas para sua primeira turma de doutorandos. E Minas Gerais passou a ter, de fato, mais uma faculdade de medicina.

Década de 1920 – a recém inaugurada Penitenciária de Uberaba, prédio construído pelos arquitetos italianos Luigi Dorça e Miguel Laterza. Foto do acervo do Arquivo Mineiro
Desde o início do século XX, Uberaba era um centro médico importante. Viajantes chegavam todos os dias das imensidões do sertão brasileiro em busca de atendimento. Com o tempo, multiplicaram-se os consultórios médicos, as clínicas, casas de saúde e hospitais. Era comum que os filhos dos pecuaristas e das demais famílias abastadas da cidade fossem estudar medicina fora – em geral no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas por vezes até no exterior. Formados e especializados, retornavam a cidade para exercer a profissão. A eles se juntavam médicos de vindos de outras partes do Brasil, atraídos pela promessa de uma clínica farta. Muitos conciliavam a prática médica com as atividades rurais – uma combinação que se tornou usual na região.

1953 (circa) – Prédio da penitenciária em obras para receber a Faculdade de Medicina. Fotógrafo não identificado.
Minas Gerais já era o terceiro estado mais populoso do Brasil, mas contava somente com a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Fundada em 1911 e mais tarde incorporada à Universidade Federal (UFMG), foi lá que formou-se médico o futuro presidente da república Juscelino Kubitschek de Oliveira. Em janeiro de 1951, JK elegeu-se governador de Minas Gerais pelo PSD, com apoio de diversos partidos e a promessa de dar uma cara nova ao estado. Além do binômio “Energia e Transporte”, Juscelino queria aumentar o número de médicos. Decidiu apoiar duas iniciativas de abrir novas faculdades: uma em Juiz de Fora e outra no Triângulo Mineiro.

23 de março de 1954 – No Palácio Rio Negro (Petrópolis, RJ), o presidente Getúlio Vargas entrega ao deputado Mário Palmério a autorização de funcionamento da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Foto do acervo do Arquivo Nacional.
Na época, Uberaba dava mostras de que estava vencendo uma antiga maldição: desde a fugaz experiência com o Instituto Agrotécnico (que entre 1895 e 1899 formou uma única turma de engenheiros agrônomos) a cidade colecionava fracassos nas tentativas de montar escolas de ensino superior. Até que, em 1947, o professor Mário Palmério – já dono do Colégio Triângulo e da Escola Técnica de Comércio – colocou em funcionamento uma Faculdade de Odontologia e, quatro anos mais tarde, um curso de Direito. Paralelamente, as Irmãs Dominicanas davam início à montagem do que se tornaria a FISTA – Faculdades Integradas São Tomás de Aquino. Mas com JK à frente do governo mineiro, Palmério – que havia sido eleito deputado federal pelo PTB – resolveu dobrar a aposta e buscou seu apoio para abrir na cidade uma faculdade de medicina,

1955 (circa) – Praça do Mercado e o prédio da Faculdade de Medicina, ainda em obras. Ainda não haviam sido erguidos os pavilhões nos fundos do prédio original. No canto direito, a Faculdade de Odontologia. Foto Postal Colombo.

        04 de maio de 1957 – Juscelino Kubitschek vem a Uberaba para a inauguração da Exposição de Gado Zebu. Estudantes se manifestam, pedindo a federalização da Faculdade de Medicina. Foto do acervo do Arquivo Nacional.

03 de maio de 1956 – Já como Presidente da República, Juscelino Kubitschek visita Uberaba e inaugura oficialmente o prédio da FMTM. Foto do acervo do Arquivo Nacional.
1960c – Prédio da FMTM nos primeiros anos de funcionamento da faculdade. Foto do acervo do IBGE.

Junho de 1968 – Alunos e professores da UFTM defronte ao prédio da faculdade. Foto publicada em matéria da revista semanal Manchete, do Rio de Janeiro.

Julho de 2013 – Prédio da Faculdade de Medicina da UFTM ao cair da noite. Foto de André Lopes.

Embora não fosse da região, Juscelino tinha um histórico de proximidade com Uberaba. Em 1934, acompanhou o interventor Benedito Valadares na visita a Exposição Agropecuária e deu início ao hábito de frequentar as feiras de gado zebu. Isso não impediu que, em abril de 1952, a cidade fosse palco de uma assombrosa revolta popular contra um aumento de impostos estaduais promovida por seu governo, que só foi contida por tropas enviadas da capital e resultou em dezenas de uberabenses presos. O motim deixou claro que crescia a força do movimento separatista do Triângulo Mineiro, que tinha em Palmério um dos seus entusiastas.

Velha raposa política, JK aproveitou a oportunidade para estreitar os laços com a região. Poucos dias depois da revolta, desembarcou na cidade em companhia do presidente Getúlio Vargas, de quem era fiel aliado. Reza a lenda que teria prometido transformar o belo prédio da praça do Mercado – construído em estilo eclético na década de 1910, por Luigi Dorça e Miguel Laterza, para sediar uma penitenciária estadual – em uma faculdade de medicina. No ano seguinte, um projeto de lei foi aprovado pela Assembleia Legislativa mineira cedendo o prédio e fornecendo apoio financeiro estadual ao projeto. Coube ao presidente Vargas autorizar o funcionamento do curso em 23 de março de 1954. O médico Mozart Furtado Nunes foi escolhido como o primeiro diretor, à frente de um grupo inicial de 18 professores. No mês seguinte, JK veio a Uberaba para dar pessoalmente a aula inaugural para os alunos aprovados no primeiro vestibular.

Estudar medicina deixava de ser um privilégio das famílias muito ricas da região mas, por alguns meses, os calouros da nova faculdade dividiram o grande prédio, ainda em obras, com algumas dezenas de detentos, que continuavam encarcerados no andar superior. “Eles gostavam da nossa presença: nos pediam cigarros, comida e conselhos médicos”, contou no evento o Dr. Hiroji Okano. Parte das aulas eram ministradas nas salas e laboratórios da Faculdade de Odontologia.

Eleito Presidente da República em 1955, JK relutou, mas acabou cedendo à pressão dos estudantes e da comunidade uberabense que pediam a federalização da escola, Em 1960, Uberaba passou a contar com seu primeiro curso superior público e gratuito. Com o passar dos anos, a FMTM ganhou cursos de pós graduação, programas de pesquisa e residência médica, angrariando respeito e prestígio dentro da comunidade científica brasileira e internacional. A partir do final dos anos 1980, novos cursos de graduação e pós graduação foram abertos na área de saúde. Em 2005, durante o governo do presidente Lula, a FMTM foi enfim transformada em uma Universidade Federal.

(André Borges Lopes / Uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna Binóculo Reverso do Jornal de Uberaba em 08/12/2019)


sábado, 28 de dezembro de 2019

A IGREJA DE PEDRA DOS DOMINICANOS

Estatua de São Domingos no jardim defronte à igreja. Foto de André Borges Lopes.
Não é todo mundo que gosta do seu estilo e, para muita gente, o prédio parece uma construção inacabada. Outros admiram-se com a sua beleza rústica. Impossível é ficar indiferente diante da Igreja de São Domingos, o centenário templo neogótico erguido pela congregação dos dominicanos em Uberaba na virada do século XIX para o XX. Mesmo nos dias de hoje, essa igreja construída com grossas paredes de pedra aparente impressiona por sua imponência e grandiosidade. Dá para imaginar a sensação que devia causar na Uberaba completamente sem prédios de 1904. No dia 2 de outubro daquele ano, o templo foi oficialmente inaugurado – ainda sem as duas torres e as abóbadas centrais sob a estrutura do telhado – em uma solenidade que agitou a vida pacata da cidade.

As novenas preparatórias tiveram início uma semana antes, em 23 de setembro. Estiveram presentes na missa de inauguração, além do chefe da diocese local – Dom Eduardo Duarte – dois bispos especialmente convidados: Dom Cláudio Ponce de Leão, do Rio Grande do Sul, e Dom José Lourenço, do Amazonas. Mais de 300 romeiros chegaram pelos trens da Cia. Mogiana. “As ruas da cidade, durante os dias de festa, regurgitavam de povo. O vasto templo, cuja beleza arquitetônica o faz um dos primeiros desse estado, enchia-se diariamente de gente”, contou o correspondente do jornal Correio Paulistano. Missas cantadas contaram com a participação de várias bandas da cidade, do “Schola cantorum” do Ginásio Diocesano e do Coro do Rosário. Na inauguração, cantou-se o Hino Nacional Brasileiro, a Marcha Pontifical e a Marselhesa. Em 1907, o grande templo sediou posse de Dom Eduardo, o primeiro bispo da nova diocese de Uberaba. No ano seguinte, celebrou-se ali a missa de comemoração do 7o centenário da revelação de São Domingos – em uma cerimônia na qual teriam sido concedidas mais de 3 mil comunhões.

Fundada por São Domingos em 1216, a “ordem dos pregadores” (mais conhecidos como“dominicanos”) havia se estabelecido em nossa cidade em 1881, proveniente de Tolouse, na França. Dois anos depois, chegou por aqui o frade italiano Raimundo Anfossi, responsável pela construção do primeiro prédio do Colégio Nossa Senhora das Dores (inaugurado em 1895). Os dominicanos haviam ocupado o pequeno convento erguido pelo franciscano Frei Paulino e assumido a antiga igrejinha de Santa Rita, que não conseguia acolher mais que duas centenas de fiéis nas missas de domingo – muito pouco para uma população que crescia rapidamente. Na época, a tradicional festa de Nossa Senhora do Rosário já reunia todos os anos milhares de devotos vindos de toda a região. Por isso, em janeiro de 1899, Frei Anfossi lançou a pedra fundamental de uma nova igreja, que deveria ser capaz de abrigar entre 1200 e 1500 pessoas. O terreno para a construção, no alto da antiga Ladeira do Mercado (atual Rua Lauro Borges), foi doado pelo Comendador José Bento do Vale e por sua esposa, Francisca Teodora.

  
Interior da igreja durante a construção, por volta de 1900.
Foto do arquivo dos Dominicanos de Tolouse.

Não está devidamente documentada a autoria do seu projeto, que tem a planta da nave em forma de cruz. Sabe-se que a construção ficou a cargo do empreiteiro italiano Emílio Betti Monsagratti, já estabelecido na cidade, que teria contado com a colaboração de um engenheiro francês de nome Florent, do qual não se tem maiores informações. Segundo a pesquisadora francesa Claire Pic, autora de um trabalho sobre a missão dominicana no Brasil (“Les dominicains de Toulouse au Brésil – 1881-1952:de la mission à l’apostolat intellectuel”), “sua aparência maciça, com tijolos ou pedras expostas (...) é similar à das construções no estilo gótico. Essas obras contrastam com as que eram usuais no Brasil, onde a arquitetura dos edifícios religiosos é geralmente colonial ou neocolonial, relacionadas às origens portuguesas do país. Elas testemunham a origem dos dominicanos, por sua semelhança com o estilo de edifícios religiosos construídos durante o período medieval no sudoeste da França”.


Igreja de São Domingos vista de frente, ainda sem as duas torres,
 e a réplica da Gruta de Lourdes. Esse cartão postal foi enviado em 1919, quando as torres já haviam sido concluídas.

       A igreja de São Domingos introduziu algumas novidades em Uberaba, como o teto de alvenaria em forma de abóboda, feito com tijolos (inaugurado em 1939). Usou-se na construção das paredes uma rocha sedimentar do tipo “Limonita”, abundante na região do cerrado, onde é conhecida como “pedra Tapiocanga”. Rica em óxidos de ferro, ela deu à igreja sua coloração marrom avermelhada. O trabalho de erguê-la contou com a colaboração de muitos operários e construtores locais, entre eles José Cotani. Jornais da época estimaram o custo da construção em mais de 600 contos de reis – uma pequena fortuna, suficiente para comprar três ou quatro fazendas grandes na região – que foi obtida com doações da comunidade. Uma réplica da Gruta de Lourdes foi construída, usando pedras e galhos de árvores, ao lado da edificação pelo cantareiro italiano Miguel Laterza. Dentro da melhor tradição dominicana – de seguir a fé sem virar as costas à ciência – quatro para-raios foram especialmente encomendados e instalados no telhado antes da inauguração.



Vista de Uberaba nos anos 1920, tomada do alto da torre da catedral. Ao fundo, no canto direito, aparece a igreja de São Domingos já com as torres construídas. Cartão Postal de Marcelino Guimarães.
Durante cerca dez anos, o templo funcionou sem as duas torres que, previstas no projeto original, só foram concluídas em 1914. Tinham a estrutura e a parte inferior feitas em madeira de lei, com os telhados pontiagudos revestidos com placas de cobre importado, o que dava a elas uma coloração particular. No início da década de 1960, o interior da nave passou por uma reforma a cargo do arquiteto Carlos Millan, que restaurou telhado e vitrais além de substituir parte do piso em ladrilho hidráulico por pedra branca de Pirenópolis. Os altares de madeira foram trocados, parte do mobiliário original e das imagens antigas foram vendidos, doados ou se perderam durante essa obra.

Vista aérea da igreja de São Domingos no final dos anos 1950, tendo como fundo o centro da cidade de Uberaba. Foto Postal Colombo.
Durante cerca dez anos, o templo funcionou sem as duas torres que, previstas no projeto original, só foram concluídas em 1914. Tinham a estrutura e a parte inferior feitas em madeira de lei, com os telhados pontiagudos revestidos com placas de cobre importado, o que dava a elas uma coloração particular. 
Praça defronte à igreja de São Domingos feita provavalmente em 1967, quando a igreja ainda tinha as torres originais.
Foto: jornal Correio da Manhã/Arquivo Nacional
Detalhe do telhado das torres, feito em folhas de cobre, já em processo de deterioração no final dos anos 1960. Foto: jornal Correio da Manhã/Arquivo Nacional

No final de 1980, as duas torres estavam em estado precário de conservação e algumas placas de cobre começavam a se desprender, colocando em risco os visitantes. A prefeitura municipal contratou a Construtora Urbano Salomão para fazer a demolição das antigas estruturas e a construção de duas réplicas. Novas torres foram erguidas com estrutura de metal e concreto, com revestimento do telhado feito em chapas de ferro pintado com tinta epoxi, serviço executado pela empresa uberabense Promelco. O obra, concluída em agosto de 1981, deixou as torres com uma aparência mais rústica que a original. Em 2003, a igreja de São Domingos foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).

(André Borges Lopes – uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna “Binóculo
Reverso” do Jornal de Uberaba em 22/12/2019)




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O ITALIANO QUE MUDOU A FACE DA CIDADE

O que têm em comum em nossa cidade o sobradão da Câmara Municipal, a Santa Casa de Misericórdia, a velha Fábrica de Tecidos do São Benedito, os prédios do Senai/Fiemg, a capela do Colégio Nossa Senhora das Dores, a sede da Associação Comercial, o Asilo Santo Antônio e o Sanatório Espírita? Todos esses prédios – entre centenas de outros menos conhecidos – têm a mão daquele que foi o maior dos construtores que repaginaram a cidade de Uberaba na primeira metade do século passado: o imigrante italiano Santos Guido.

Santos Guido (de terno claro), Alfredo Sabino, José Mendonça e Odilon Fernandes
 em reunião do Rotary Club de Uberaba, 1963.Fotógrafo não identificado / Casa do Cinza

Nascido na pequena vila de Scigliano, na região da Calábria (a ponta da “bota” no sul da Itália) em outubro de 1889, Santos Guido chegou em Uberaba ainda muito jovem. Em 1913, com pouco mais de 20 anos de idade, foi um dos fundadores da Liga Operária local – provavelmente a primeira das iniciativas associacionistas que marcaram a sua vida em nossa cidade. “Oriundi” orgulhoso de suas origens, foi um dos fundadores (e primeiro presidente) do time de futebol Palestra Itália de Uberaba, em 1918. Nas décadas seguintes, trabalhou pela estruturação da Associação Comercial e da liga “Fratelanza Itália”. Foi ainda membro do Rotary Clube e da Loja Maçônica “Estrela Uberabense”.

Prédio em estilo Art Decó onde funcionava a carpintaria e o depósito de materiais de construção das Indústrias Santos Guido na década de 1930 (Praça Comendador Quintino, esquina com Rua Henrique Dias). Foto do Google, em julho de 2011.

Mas foi no ramo da construção civil que Santos Guido se destacou. Engenheiro e arquiteto autodidata, operário, marceneiro e dono de lojas de materiais de construção, Guido já era, no início da década de 1930, o mais renomado construtor da cidade. No triênio 1928-1930, mudanças no código de obras municipal haviam obrigado os proprietários a alterar as fachadas das edificações construídas defronte às ruas do centro. Saíam de cena as velhas casas coloniais, com os beirais dos telhados pendurados sobre as calçadas, para dar lugar às novas fachadas retas com platibandas decoradas. O historiador Hidelbrando Pontes atribui a Santos Guido “a introdução das ordens civis modernas” em nossa cidade: normas técnicas e urbanísticas que disciplinaram a construção civil.

Localização onde funcionou a serraria das Indústrias Santos Guido entre o início da década de 1930 e meados dos anos 1960. Trecho inicial da atual Avenida Odilon Fernandes.
Detalhe de planta da cidade elaborada por Gabriel Totti em 1956.

Em dezembro de 1934, o jornal Lavoura e Comércio dedicou uma matéria de uma página (escrita por um cronista que assinou apenas P. S.) sobre as empresas de Santos Guido. O construtor era dono de uma grande serraria – situada na baixada da atual avenida Dr. Odilon Fernandes, ao lado da praça da Concha Acústica – onde grandes toras de madeira de lei se transformavam em tábuas, caibros e vigas. Na esquina das ruas Martim Francisco e Henrique Dias, um elegante predinho em estilo “art déco” abrigava sua carpintaria e um depósito de materiais de construção. Na praça Rui Barbosa, quase defronte ao Paço Municipal, ficavam os escritórios. As empresas somavam uma centena de empregados e Santos Guido era o maior cliente da companhia de luz e força da cidade (o consumo só perdia para o da fábrica de tecidos, que dispunha de usina própria).

Matéria especial sobre Santos Guido, publicada na edição de 24/25 de 
dezembro de 1934 do jornal uberabense Lavoura e Comércio.

Perguntado sobre quantas casas havia construído até então, Santos Guido não soube responder. Dizia ele que ao menos um terço das casas do centro havia passado por suas mãos, na construção ou em reformas. E que nos dois terços restantes, certamente havia alguma madeira, cal ou cimento fornecido por suas lojas. Laços familiares ampliavam essa participação. Sua irmã, Rosina Guido, casou-se com outro importante empreiteiro italiano estabelecido em Uberaba: Miguel Laterza, um dos construtores da igreja de São Domingos.

Detalhe do caminhão das indústrias Santos Guido na Praça Rui Barbosa. Lavoura e Comércio, 24/12/1934

Santos Guido também foi, por décadas, o maior construtor de obras públicas do município e um inovador em diversos setores. Trouxe à cidade o primeiro caminhão pesado movido a óleo diesel (provavelmente um Fiat 642N italiano), introduziu um estilo de residências recuadas em relação à rua do tipo “bungalow” – um contraponto menos suntuoso aos antigos “palacetes” – e foi um dos entusiastas e construtores da primeira piscina pública de Uberaba: no clube da Associação Comercial, na rua Manoel Borges, inaugurada em janeiro de 1936.

Caminhão italiano pesado Fiat 642N fabricado no início dos anos 1930. Provavelmente, do mesmo modelo utilizado pelas indústrias Santos Guido, primeiro caminhão movido a óleo diesel de Uberaba.
Foto: Wikipedia

Um de seus filhos, João Guido, formou-se engenheiro na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No final dos anos 1940, passou a dirigir a empresa – renomeada Santos Guido & Filhos – ao lado do pai. Duas décadas mais tarde, foi eleito prefeito municipal. Aliviado do cotidiano dos negócios, Santos Guido dedicou-se ao associativismo, à militância política e a obras de filantropia. Foi delegado local da Federação das Indústrias e presidente por vários mandatos do asilo Santo Antônio.

Embarque de gado zebu em um avião Curtiss C-46 no aeroporto de Uberaba em junho de 1948. Detalhe do caminhão das Indústrias Santos Guido & Filhos Ltda.
Foto de J. Schroden Jr.

“Santos Guido não tem seu nome ligado à história de Uberaba”, dizia P. S. na premonitória crônica de 1934. “Não venceu exércitos nem comandou legiões de eleitores. Mas fez mais do que isso. Fez casas para muita gente que hoje, metida dentro de quatro paredes confortáveis, nem sequer se lembra das mãos do artista que delas fez a planta, que as elevou e que sobre elas arranjou as telhas”. O construtor faleceu em 1982, pouco antes de completar 93 anos de idade. São raras as suas fotos e não consta que alguém tenha publicado sua biografia.

Palanque de recepção ao presidente Getúlio Vargas em maio de 1953, na praça Rui Barbosa. No canto direito superior, um detalhe dos escritórios das Indústrias Santos Guido no centro da cidade.
Foto do Arquivo Nacional.

(André Borges Lopes / uma primeira versão desse texto foi publicada na coluna "Binóculo Reverso" do Jornal de Uberaba em 24 de novembro de 2019. )

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terça-feira, 22 de outubro de 2019

AS PRENSAS FRANCESAS DO DOUTOR EDGARD

Em maio de 1956, Uberaba celebrou seu primeiro centenário em grande estilo. Por meses, uma comissão nomeada pela Câmara Municipal encarregou-se de organizar as festas, bailes e eventos que – aproveitando o período da Expozebu – estenderam-se por todo o mês. Mas, por pouco, a celebração não deu errado: no dia 2, uma tempestade quase impediu a chegada dos aviões com convidados e acabou forçando o adiamento do desfile cívico na Praça Rui Barbosa, o ponto alto das comemorações. O Douglas DC-3 da FAB que trouxe o presidente Juscelino Kubitscheck só conseguiu pousar à noite, debaixo de forte chuva, na pista de terra do aeroporto.

Dr. Edgard (de camisa clara e gravata) supervisiona o início das obras da Produtos Ceres em Outubro de 1953.
Em meio à festa, um evento passou quase despercebido. Na manhã do dia 3, Juscelino e o governador mineiro Bias Fortes aproveitaram para conhecer uma planta industrial que estava prestes a ser inaugurada. Nos cafundós do alto da Boa Vista, ao lado da linha férrea da Companhia Mogiana, engenheiros e operários completavam os testes na fábrica da Produtos Ceres SA. Na placa da obra, uma ideia da ambição de seu criador: ali seriam produzidos óleos vegetais de algodão, arroz, amendoim, babaçu e soja. Lance ousado para uma cidade interiorana onde a população cozinhava em fogões de lenha com banha de porco e manteiga de leite. E cuja economia dependia da agricultura familiar e dos humores do mercado de gado Zebu.

Detalhe da placa:

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Obras da fábrica de óleos vegetais

PRODUTOS CERES SA

Indústria e Comércio

            
  Algodão                                                                                                                       
                             Arroz 
                                      Amendoim
                                                         Babaçu
                                                                      Soja

Por trás dessa ousadia estava Edgard Rodrigues da Cunha. Aos 45 anos de idade, esse uberabense conhecia a realidade local mas, desde cedo, sonhava alto. Nascido na Fazenda da Cruz, no então Distrito de Uberabinha (atual Uberlândia), Edgard fora estudar Direito no Rio de Janeiro. Em 1937, voltou e deu início a uma bem sucedida carreira de advogado. Seu pai, Gustavo, havia sido um dos responsáveis por trazer a Uberaba o primeiro caminhão. No negócio dos transportes conheceu o empreiteiro Santos Guido e acabou tornando-se gerente da sua serraria.

Dr, Edgard Rodrigues da Cunha mostra ao presidente Juscelino a nova planta industrial da Produtos Ceres SA, 03/05/1956
Foto do acervo do Arquivo Nacional.
Por anos, Gustavo alimentou o sonho de montar uma fábrica de rações animais e produtos derivados de milho e mandioca. Em 1941, ele e dois de seus filhos homens, Edgard e Aparício, criaram a Produtos Ceres Ltda. Poucos anos depois, o pai decidiu passar suas cotas na companhia para os filhos, mas continuou na ativa, assumindo a chefia da produção. O engenheiro Aparício permaneceu na sociedade, mas mudou-se para ir trabalhar na construção da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. E coube ao advogado Edgard assumir o leme da empresa.

Planta industrial da Produtos Ceres nos anos 1960, no Alto da Boa Vista. Hoje, só resta preservado um pedaço da chaminé.

No final dos anos 1940, a Produtos Ceres já era uma indústria de destaque em Uberaba. Havia comprado um grande terreno nos limites da cidade, onde erguera um moderno galpão projetado pelo engenheiro italiano Ernesto Gullo. Com máquinas importadas dos Estados Unidos, fabricava derivados de milho para uso culinário e uma linha de rações balanceadas para bovinos, suínos e aves. Entre as modernidades da fábrica, ela dispunha de vestiário com chuveiros para os operários, coisa rara nessa época. Mas Edgard não estava satisfeito. Alinhado com o espírito desenvolvimentista da época, ele queria montar uma grande indústria que alavancasse o potencial agrícola da região e oferecesse empregos de qualidade à população uberabense.
Equipamentos franceses da Produtos Ceres SA. Foto: Prieto.
Desde meados do século XIX – quando fora inaugurada a fábrica de tecidos do Cassu – tentava-se incrementar a produção de algodão no Triângulo Mineiro. O uso têxtil do algodão gerava como subproduto grande quantidade de caroços que, por muito tempo, eram descartados. Foram os norte-americanos que primeiro desenvolveram um processo para extrair dessas sementes um óleo que, purificado e desodorizado, servia como alternativa alimentar à gordura animal. No início do século XX, outros grãos como o amendoim e a (então pouco conhecida) soja, também começaram a ser usados com essa finalidade. Todos esses processos industriais dependiam de maquinário caro e sofisticado. Por isso, apenas grandes empresas (em geral multinacionais) se arriscavam nesse setor. Mas Dr. Edgard não se intimidou e começou a mexer os pauzinhos.

Equipamentos franceses da Produtos Ceres SA. Foto: Prieto.
O primeiro dever de casa foi pesquisar. No início de 1952, entrou em contato com industriais norte-americanos e europeus, buscando a melhor alternativa técnica e os custos mais atraentes. Em algumas das correspondências trocadas nessa época, Edgard questiona os fabricantes sobre novos métodos de extração de óleo que, recentemente descobertos, sequer estavam disponíveis para venda. Um nível de interesse e de conhecimento técnico surpreendente para alguém que não tinha formação na área, especialmente numa época em que o acesso a informação atualizada era muito mais difícil do que hoje.

Vista externa da fábrica da Produtos Ceres. Foto: Prieto
Foram meses de perguntas, projetos, propostas e acertos comerciais. Edgard acabou fechando o negócio com ajuda da Sobemec, do Rio de Janeiro – um escritório de representação de grandes empresas francesas. Da França viriam as prensas, os equipamentos de purificação e a sofisticada tecnologia para a extração dos óleos com uso de solventes. Para levantar o capital necessário, Edgard transformou a Ceres em Sociedade Anônima e convidou para assumir a presidência o Sr. João Severiano Rodrigues da Cunha (conhecido como “Coronel Joanico”), empresário respeitado, que já havia sido prefeito de Uberlândia por três mandatos.

Anúncio da Produtos Ceres no jornal Lavoura e Comércio

O fornecimento de energia elétrica – ainda precário nessa época – e da matéria prima para a usina seria um segundo desafio. Foi preciso montar um grupo gerador próprio e, por muitos anos, a Produtos Ceres (em parceria com o Banco do Brasil) estimulou o plantio de milho, algodão e amendoim em Uberaba e nos municípios vizinhos. A empresa garantia aos agricultores a compra de toda a safra colhida, pagando o preço praticado na Capital Paulista, abatido o custo do frete. Mas boa parte dos grãos teria de vir do noroeste do estado de São Paulo, onde as culturas já estavam mais consolidadas. Toda semana, toneladas de carga chegavam em vagões da Cia. Mogiana carregados de caroços de algodão vindos da outra margem do Rio Grande.                                      
                                                       
Cartão com a linha de óleos vegetais da Produtos Ceres.

Ao mesmo tempo, era preciso levantar os recursos para a obra. Edgard, que fora diretor da Sociedade Rural do Triângulo Mineiro, buscou investidores entre os pecuaristas da região. Oferecia aos futuros acionistas da Ceres a garantia do fornecimento de “tortas” para alimentação bovina nos meses de seca – um subproduto altamente nutritivo da extração do óleo de algodão. Além disso, suas boas relações com JK, desde o tempo em este que ocupava o governo de Minas, facilitaram a liberação das linhas de crédito e das divisas em moeda estrangeira para a importação do maquinário.

Em outubro de 1955, cinco carretas trouxeram do Porto de Santos as novas máquinas. Com elas, vieram técnicos e um engenheiro francês, encarregados da montagem e de treinar o pessoal. No terreno da fábrica, que fora ampliado por novas aquisições, silos, galpões e prédios administrativos já haviam sido erguidos sob medida, projetados em estilo moderno pelo arquiteto Germano Gultzgoff. No final do ano seguinte, poucos meses após a visita de Juscelino, os mercados do interior do Brasil começavam a receber as latas do óleo de algodão Banquete e do óleo de amendoim Bem Bom. As Indústrias Matarazzo e as multinacionais Swift e Anderson Clayton tinham na pequena Uberaba um novo concorrente.


(André Borges Lopes / Uma primeira versão desse texto foi publicada originalmente na coluna Binóculo Reverso do Jornal de Uberaba.



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